quinta-feira, setembro 04, 2008

O poder do olhar do professor

O olhar do professor tem o poder de transformar uma criança em inteligente ou burra.
Rubem Alves (2003)(*)

Eu poderia testemunhar (não só eu, muitos de nós, provavelmente todos os professores) por vários casos verídicos quanto essas palavras de Rubem Alves são verdadeiras.
Vou escolher só um caso: em que uma aluna foi olhada de modos antagónicos, respectivamente pela directora de turma e pela professora de Matemática. O olhar da dt tinha "peso" junto dos alunos e de outros professores da turma; o da prof de mat (deixem abreviar assim para comodidade de escrita) tinha-o também pela disciplina, pois uma criança "burra" não conseguiria ter sucesso nela. Mas o olhar de um(a) director(a) de turma pode ter uma importância enorme (muitas vezes para sorte, algumas também para azar de quem é olhado)


Saliento como nota prévia: Não faço pessoalizações, o tempo já passado e o resumo por alto tornam o caso anónimo, digamos que é um breve exemplo abstracto de casos ("olhares") que também acontecem aqui e ali, e o bom seria nunca acontecerem.


A Maria (de outro nome, mas prefiro mudá-lo) teve a mesma dt e a mesma prof de mat do 7º ao 9º ano, mas no 9º o restante conselho de turma mudou devido a mudança de escola dos respectivos professores.
No início do 7º ano, a Maria, que transitara com nível negativo a Matemática, mostrava-se, nas aulas desta, distraída, conversadora e desinteressada. Mas não demorou muito o dia em que, em vez de desculpas evasivas, conversou com seriedade e sinceridade com a professora. Disse então que tinha "pouca queda" para os estudos e que na Matemática, "a disciplina mais difícil", nessa é que não conseguiria, que o pai até sabia e já contava com isso, e por isso é que participava tão pouco. E acrescentou, baixando a voz para que só a professora ouvisse: "é que eu sou um bocado burra, setôra".
A última afirmação, convicta, feita como quem faz uma confidência, claro que bateu forte na professora. Era daquelas situações que provocam logo um desafio, uma aposta que se tem a responsabilidade de ganhar, pois não há alunos burros, e a Maria era saudável, não tinha nenhuma deficiência.

Não interessa narrar que estímulos e estratégias a professora usou (todo o professor tem obrigação de os conhecer, ainda que cada um os use ao seu jeito pessoal). Salto já o relato para o 9º ano da Maria. (Antes, esclareço só que o programa de Matemática do 7º ano retomava os conteúdos essencias do 2º Ciclo quase como iniciação, pelo que é o ano mais propício à recuperação de alunos que aí chegam com insucesso nessa disciplina, o que também ajudou a acção da professora) Nesse 9º ano, ela já não preocupava a professora, já não precisava de especial atenção, tornara-se empenhada e trabalhadora e os seus testes já tinham passado a ser sempre positivos e, agora, nunca abaixo dos 60% pelo menos.
Mas, como acima disse, nesse ano o conselho de turma mudara, no início alguns dos novos professores anotaram as informações da dt, a qual, no caso da Maria (aliás, também em mais casos, mas eu optei por contar um só), a caracterizava como "coitadinha, tem muitas dificuldades, não dá, na minha disciplina não tem hipóteses". E não terá adiantado muito que a prof de mat a tenha rebatido, as anotações eram das informações da dt, a esta é que cabe dá-las, para mais uma dt da turma desde o 7º ano e "corre" que é uma dt muito competente... (Já agora, digo que nunca tomei nota dessas informações quando recebia novas turmas, excepto casos de doença ou outros problemas objectivos - nos meus últimos anos de ensino até recebi oitavos anos sem ter começado com eles no sétimo, mas tinha a mesma atitude, que não era por acaso nem por preguiça de tomar 'certas' notas)

Volto a abreviar (não são os intervenientes que quero focar, mas sim o tipo de situação) contando apenas que a Maria, no 3º Período do 9º ano, começou a faltar a certas aulas, até acabar por faltar a todas nas últimas semanas do ano lectivo. Mas apareceu no teste final de Matemática - um teste global -, cujo resultado não deixou de ser afectado pelas faltas, contudo até estudou e até conseguiu os 50% como positiva à justa mas sem favor (e a professora era tida como exigente).
Os pais da Maria eram pessoas pouco instruídas e que não faziam grande questão em que ela terminasse ao menos o 9º ano, pelo que lhe restavam, como incentivos (e desincentivos), "os olhares" dos professores. Entretanto a mãe, a quem a dt escrevera a pedir que enviasse justificações das faltas, acabou por as enviar. No Conselho de Turma para avaliação final a dt informou que as tinha aceite apesar de fora de prazo porque era "chato" reprovar a Maria por faltas, era melhor reprovar por notas.

Duas notas finais:

1 - A prof de mat tentara demover a Maria de desistir. Mas a úitima conversa foi curta, a professora já tinha constatado o efeito da caracterização da Maria que a dt fizera no novo conselho de turma e continuara a repetir, e sabia que, naquela altura, ela estava mesmo reprovada com três negativas, melhor dizendo, com quatro, pois nos conselhos de turma em que aparecem 3 negativas firmes é frequente ficar outro professor hesitante e logo vem a quarta para evitar "aborrecimentos" (tal como sabemos que noutros conselhos de turma tantas vezes alunos acabam por ser aprovados com mais negativas do que a Maria tinha, subidas algumas no último).
E foi nessa última conversa que voltou a ouvir a Maria repetir o que dissera no início do 7º ano, mas agora com um sorriso meio irónico, como quem pisca o olho (embora pouco alegre): "sou burra", ao que apenas respondeu que ela já sabia bem que isso não era verdade - sim, a Maria pelo menos isso já sabia, ao menos isso já não era preciso provar-lhe ;)

2 - Este caso só saiu da cabeça da prof de mat quando encontrou por acaso a Maria e esta lhe disse (contrariamente ao que receara pois ela já tinha 15 anos, já estava fora da escolaridade obrigatória) que voltara a matricular-se e regressara à escola porque afinal queria ir para determinado curso profissional e, portanto, queria terminar o 9º ano. (Afinal a "história" não acabou mal)

Ah! Mais uma nota: não gostei nada de fazer este relato, mesmo abreviado, mas as palavras de Rubem Alves que citei no início exprimem uma verdade que dá grande responsabilidade aos professores e não é coisa abstracta - e os alunos são crianças e adolescentes bem concretos, e estão quase a regressar às aulas...

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(*) Conferência promovida pela ASA (pela mão do JMA)

2 comentários:

Pedro disse...

Podemos não ter tanto poder como um político, um advogado ou um jornalista, mas temos maior capacidade de moldar a personalidade de qualquer jovem do que os três anteriores juntos...
Para o melhor e para o pior...

João disse...

A escola foi pensada para excluir...