segunda-feira, julho 10, 2006

Nas horas de cada dia

Um post da Tit sobre o Tempo trouxe-me à memória uma época em que os dias pareciam passar mais devagar, sem a sensação de que cada 24 horas não chegava para fazer tudo o que gostávamos de fazer. E, não penso apenas no que tomamos como tarefas ou afazeres obrigatórios, mas nas outras coisas que as apenas 24 horas nos vão levando a adiar, como a pilha de livros em espera, o ir contemplar devagar o rio ou o mar, o encontro com amigos que a agenda vai obrigando a protelar, o filme ou peça de teatro ou concerto ou exposição que não queríamos ter perdido mas já passou.

Vim estudar para Lisboa com 15 anos, na minha vila natal não havia onde prosseguir os estudos mesmo ainda liceais, foi com essa idade que passei a ter a responsabilidade de tomar conta de mim (embora com o controlo que meus pais pediam aos meus hospedeiros). E tenho bem presente na memória essa Lisboa de então, lembro como sentia os sons e cheiros matinais de uma capital em que tudo se podia saborear devagar - os eléctricos com o tlin tlar isento da poluição sonora de businas, deslocando-se nos carris sem altas velocidades, as pessoas que desciam à rua ao encontro dos vendedores quando escutavam os pregões das varinas, leiteiros e ardinas e que diziam 'bom dia', 'bom dia vizinha', 'bom dia menina', ainda não tornadas anónimas ou indiferentes nas pequenas multidões de hoje, também as ruas, largos, fontes por onde se não passava de automóvel, por onde não se passava sem nelas sequer já reparar, e ainda os cafés não em grande quantidade mas que não fechavam às 21 horas, hoje encerrados no tempo que se conseguia que sobrasse para o café com amigos após o jantar, empurrando assim os jovens para mil e um bares e os adultos para casa a nesta substituirem por alguma comunicação (por vezes anónima) via Internet aqueles pontos de encontro onde não era preciso combinar para se saber que alguns amigos e conhecidos lá estariam de certeza.

Já que me reportei aos meus 15 anos, comparo o tempo dos adolescentes de então com os de hoje. É verdade que as horas no liceu eram lentas porque quase todas as aulas eram chatas, algumas a parecerem infindáveis, mas até nestas se ia arranjando tempo para ler, escrever ou divertir a jogar a batalha naval com a colega do lado ou da frente perante uma ou outra professora que, lá de cima do seu estrado, expunha o tempo quase todo para uma turma que não olhava com olhar de ver, abstraída na sua exposição. Mas o horário do liceu terminava cedo, dava para ir para casa fazer os tpcs e depois sentar confortavelmente, pernas estendidas, na entrega ao enorme prazer de ler que era comum a tantos estudantes. E, os que não estudavam nem tinham livros (muitos mais, eu sei), também tinham tempo, que parecia tanto, para esses jogos de rua hoje apenas chamados jogos tradicionais do antigamente, jogados naquelas algumas ruas em que raramente passava um carro e nos pátios e terrenos trazeiros aos prédios, ainda não tranformados em parques de estacionamento a abarrotar.

Hoje, os adolescentes passam dias inteiros na escola com pequenos intervalos entre aulas nos quais, em muitos casos, não há espaços senão para encontrões e atropelos. E chegam cansados e tarde a casa, o tempo já só dá para os tpcs ou, para os que optam pela TV, a playstation ou a conversação oca no msn mais não resta do que pensar à pressa numa desculpa a dar ao professor. Depois chega o fim de semana, os que ainda saem com a família são arrastados por esta para um dos centros comerciais que nascem por todo o lado como ervas, de preferência, aqui na capital, para o atordoante e alienador Colombo, há sempre pretexto para aí passar uma preciosa tarde, um qualquer objecto é inventado como pretexto de ir 'às compras' para mais um gasto não indispensável a aumentar a dívida que o cartão de crédito vai acumulando, além de que para captar a companhia do adolescente é preciso arranjar tempo para a escolha de uns ténis de marca ou mais um jogo para a playstation - que decepção se a proposta fosse a aquisição de um livro -, e para as crianças lá se concedem 15 minutos, da tarde de atordoamento por corredores de montras, para brincarem nos pequenos espaços a elas destinados.

Este post não significa saudosismo, apenas saudade; não significa que eu tenha ficado no passado a criticar o progresso, somente uma pergunta sobre se tudo o que parece progresso aumenta de facto a qualidade de vida. Eu até vivo mais devagar desde há alguns anos (embora poucos), a necessidade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo numa ginástica para caberem em cada 24 horas já ficou para trás enquanto obrigação - filhas com a sua vida autónoma, outros empreendimentos já com a experiência a fazer ponderar melhor em termos do que são investimentos com significado ou utilidade, para não falar da profissão, pois só agora chegou ao fim. Todavia, neste tempo a poder usar com mais vagar, não deixaram de permanecer as tantas coisas adiadas que referi acima. Por isso, me suscitaram memórias e (mais uma vez) reflexão sobre a ocupação do nosso tempo estas palavras da Tit que me permito reproduzir, a terminar: "
Mas... corremos afinal para quê? Para chegar onde?... Poupamos Tempo por uma vida com mais Qualidade, ou queremos apenas Tempo pelo Tempo?"

3 comentários:

maria disse...

Também, por vezes, tenho saudades dos tempos que descreves, um pouco semelhantes aos meus,só que vim mais tarde para Lisboa, quando vim para a universidade.Não sei se a descrição que fazes dos adolescentes de hoje não está um pouco pessimista e exagerada.
Quanto ao tempo o meu lema é não correr, ir vivendo sem pressa porque ele passa da mesma maneira.

matilde disse...

Concordo com a maria, no que diz respeito à descrição dos adolescentes. Na verdade parece-me um pouco exagerada, sabendo nós que muitos deles sabem e facto dar valor certo à vida, à família, ao dinheiro... Não serão todos, infelizmente, da mesma forma como também não são todos os adultos, longe disso, que o fazem. Aliás, muitos adolescentes poderiam dar grandes licções de vida a muitos adultos...
Sei que concordas comigo Isabel, o que aliás é bem visivel pela confiança nas populações mais jovens que se sente nos teus posts, de qualquer maneira apeteceu-me reafirmar esta confiança aqui ;)
Bjnhos e fico contente de te fazer pensar... mais!...ihihih

matilde disse...

(licções?! onde é que terei ido buscar esta?... :P)