quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Começar por desfazer confusões...

... sobre a função do professor ou da escola.

ou

Se a confusão se insinua devagarinho, acabará por nenhuma função ser bem cumprida.

(Adenda: Alterei a ordem em que estiveram escritas inicialmente duas partes deste post, demasiado longo, em que a parte intermédia poderia ter sido um post prévio)

Como um vago cheiro que se sente e se espalha na atmosfera, assim sinto também a começar a insinuar-se nos próprios professores um certo clima nebuloso a criar insegurança até no que dantes era claro - e por poucas que sejam as linhas de actuação sobre as quais não tenhamos dúvidas permanentes ou renovadas, sempre houve algumas básicas em que me parece que começar a interrogá-las é tão perigoso e impeditivo de avanços qualitativos quanto é impeditiva desses avanços a recusa ou fuga a outras auto-interrogações.
Cada vez mais, nestes últimos 3 ou 4 anos, nos defrontamos com maior número de alunos e de turmas já de anos escolares não iniciais a tornar-nos verdadeiramente difícil e extenuante conseguir ensinar, conseguir funcionamentos de aula que permitam aprendizagem, conseguir que queiram sequer aprender qualquer coisa.
E a realidade exterior à escola, que faz que nos andemos a defrontar com turmas indisciplinadas e muitos (demasiados) alunos que nada fazem por si mesmos para aprender, anda a ser o tal clima nebuloso a criar insegurança nos professores sobre a sua função, a fazê-los sentirem-se responsáveis ou culpados, quiçá a perguntarem-se alguns se ensinar matemática, inglês, geografia ou história é indispensável para preparar para a vida ou se não deverá antes a escola substituir a família e as diversas vivências do crescer. Dão-se aulas de formação cívica para discutir temas teóricos (espero que ao menos escolhidos com os alunos), como se valores como o respeito mútuo, a cooperação e a solidariedade não devessem e não pudessem ser aprendidos, na prática, nas aulas de todas ou quaisquer disciplinas se estas tivesssem uma estrutura de funcionamento democrático e cooperativo, como se o respeito, por exemplo, pelo ambiente ou pela própria saúde não devessem e não pudessem ser desenvolvidos em iniciativas da escola envolvendo a participação dos alunos; dão-se aulas de estudo acompanhado, como se aprender a estudar não devesse e não pudesse ser aprendido nas aulas de todas ou quaisquer disciplinas, como se uma das primeiras funções delas não fosse fomentar o trabalho, fazer aprender que é preciso pensar e é preciso esforço, não fosse, em suma, preparar para a responsabilidade e a autonomia.
Por último, creio (e sempre assim pensei) que afectividade não tem que ser, nem é sequer desejável que seja, estabelecimento de elos afectivos fortes aluno-professor, sob pena de que o aluno tenha que fazer um luto de cada vez que se separa do professor. Os alunos percebem bem que o afecto do professor está no seu gosto e empenhamento em que todos aprendam, na sua atenção, disponibilidade e envolvimento na aprendizagem de cada um, nas suas zangas pelas preguiças porque não lhe é indiferente que aprendam ou não. E perceberão pouco tempo depois de deixarem o professor como foi importante para o seu futuro escolar (e não só) que ele não os tenha infantilizado com excessiva "compreensão", que tenha apostado em que eles são capazes de fazer outras coisas que não só as fáceis, que não tenha prolongado as ditas actividades de recuperação enquanto nem um TPC fazem e que não os tenha tratado como "alunos com dificuldades de aprendizagem" quando esse rótulo é na maior parte dos casos uma treta. E isto às vezes tem que ser um pouco duro, pode parecer falta de afectividade, até resmungam (mas resmungam em voz alta, para o próprio professor, quando sabem que o podem fazer sem medo - e quando sabem que o podem fazer, os resmungos não são desrespeitosos pois o respeito é uma coisa que nasce espontaneamente do apreço). Na escola, se têm afectividade na família, os amigos são os seus pares, do professor esperam, mesmo quando não parece, que seja um bom professor, o que para eles (e na nossa própria concepção) inclui, obviamente, que seja amigo como professor).
(Confesso que fico bem mais contente quando encontro mais tarde alunos como aquela aluna que me dizia "tenho-me lembrado tanto de si, agora é que percebo bem porque é que nunca mais me dava o 4, só mesmo no final, eu esforçava-me e cheguei a achar que a stôra era injusta, agora é que percebo que estou a aguentar-me bem na matemática graças a si" - fico bem mais contente com estes encontros posteriores, que me dão segurança e tranquilidade pois nem são pouco frequentes, do que com lembrarem-se de me procurar no dia das actividades de final do ano para me darem um beijinho de despedida).


Quando leccionava 2º Ciclo, tinha turmas difíceis não pela turma em geral, não pela maioria dos alunos, mas porque entre eles havia alunos a que chamamos problemáticos - aqueles alunos que, esses sim, precisam que substituamos quanto possível os pais que não têm porque as condições pessoais e sociais lhes retiram capacidade para o serem, aqueles alunos cuja agressividade e comportamento não são mais do que reacções de infelicidade e revolta ou o único modo de serem "bons" em qualquer coisa porque nada os valida aos olhos de ninguém nem aos seus próprios, a sua auto-estima passa então por serem os melhores na desestabilização de aulas e recreios, e tudo isso não é mais do que, afinal, um grito mesmo que inconsciente de chamada de atenção. Para esses, se me perguntarem o que devo dar sobretudo - afecto ou leccionação - não tenho dúvidas em responder: afecto. Mas, até aí há (e isso sempre houve) uma confusão, pois se nenhuma criança pode ter equilíbrio emocional/psicológico na ausência de afectos, qualquer psicólogo esclarecerá que o seu equilíbrio também precisa de firmeza educativa, não excluindo punição. Aliás, eles são os primeiros a apreciarem isso desde que percebam que o professor que lhes recusa firme e severamente o direito de não respeitarem os outros (respeito a que são tão sensíveis quando alguém, por exemplo, os ofende) e até os pune é o mesmo que, logo a seguir, os ajuda, apoia, estimula, fica triste quando ouve novas queixas dele - o mesmo, também, que compreendeu desde o princípio como ele vive, em que meio familiar e/ou social decorreu e decorre a sua infância ou até já a sua adolescência.
Todavia, esses alunos não são a maioria, nem sequer em geral estão nas turmas de anos mais avançados, atingiram com várias repetências o limite de idade da escolaridade obrigatória, as escolas algumas vezes até conseguem encaminhá-los para uma via que os motiva (conseguem os seus directores de turma, por intermédio dos serviços de psicologia e de apoio ao aluno e à família existentes na própria escola (quando existem). E também não é por ser função dos professores fazerem papel de pai e mãe que o tentam fazer, até porque não é desses "pais" que eles são carentes, esse papel é demasiado insuficiente e é efémero; professores assumem um papel que sabem insuficiente, sabem que a escola não pode - não pode mesmo - resolver os problemas sociais, fazem o que podem e dedicam-se porque os governos, a quem compete resolvê-los, pouca (estou a ser comedida) prioridade dão a isso. Muitas coisas que professores fazem, não as fazem por ser sua função. Ainda bem que ao menos o professor tenta, já que mais ninguém o faz, mas, se se disser que é sua função, estar-se-á a contribuir para cada vez maior demissão de quem o deve fazer, e, ainda por cima, inutilmente porque fora da escola as suas vidas continuam.
"O que fazer deles? O óbvio. Começar por perceber o que está mal com "eles": "Eles" vêm de famílias disfuncionais ou de bairros disfuncionais. Pois bem, de pouco ou nada serve dar-lhes aulas de apoio, fornecer tutores e criar as tais turmas de percurso curricular alternativo, se não se intervier junto da família e junto do bairro em termos comunitários. Ora a isto chama-se serviço social, não é função da escola, é do Ministério do Trabalho e Solidariedade Social, autarquias e não está a funcionar. Enquanto isto não se fizer, "eles" continuam na escola a ocupar lugar, agastar o dinheiro de todos nós e a perturbar o funcionamento da dinâmica de aprendizagem, E continuam com fome, e continuam a assistir à violência física entre os pais e à violência da lei do mais forte na rua do seu bairro e ao roubo. Porque intervir socialmente implica ir lá, sujar as botas, trabalhar com as famílias e o bairro, restituir-lhes dignidade e auto-estima pela mobilização dos seus valores e das suas qualidades, implica mobilizar as pessoas para fazerem alguma coisa por elas próprias..." (João Rangel de Lima).

Todavia, esses alunos não são a maioria, nem sequer em geral estão nas turmas de anos mais avançados.

7 comentários:

Fernando Reis disse...

Cara IC
Excelente texto! Com o qual eu me identifico.
Mas preciso de um pouco mais de tempo para reflectir e poder conversar sobre ele...

Miguel Pinto disse...

Vou tentar ser breve e objectivo:
1º Convém não confundir a função da escola e a função do professor [creio que foi esse o teu esforço];
2º Parto do pressuposto que as funções da escola são maiores do que as funções do professor e que, dentro das funções do professor, há actividades conjunturais e outras estruturais [como já referi no meu cantinho];
3º Parto de um princípio que quanto mais amplo for o leque ocupacional principal menor é a capacidade de resposta do professor.
4º A definição de actividade lectiva decorre de uma análise da escola a partir das dimensões pedagógica, organizacional e institucional, faces diversas da mesma realidade.
5º Terá a escola a capacidade de definir as funções que lhe interessa desempenhar? Isto é, será que a função real da escola se sobrepõe à função requerida pelos actores educativos?

Estou como o adkalendas, preciso de tempo. Entretanto, deixa-me dormir com estas questões… ;)

Miguel Pinto disse...

no nº 1, terá faltado um com... mas adiante... boa noite!

Teresa Martinho Marques disse...

Eu ando dormir com estas questões há dias (já li o texto mais do que uma vez), mas sem grande capacidade de resposta... por falta de tempo e muito trabalho acumulado. Hoje o Miguel ajudou na sistematização e eu agradeço. Tenho dificuldade em fazê-lo.
A mim só me ocorre o mesmo. De cada vez que leio o texto sou transportada para o universo que foi meu durante cerca de 21 anos: uma escola da periferia de Setúbal que recebia muitos meninos do "bairro escuro" da vida...
O seu Porto de Abrigo era a escola, éramos nós. Nem sempre foi possível salvá-los (temos ex-alunos presos por assassínio, imaginem). Por entre as incertezas, a intuição ajudou-nos a perceber que o afecto tinha de ser exigente, orientador, acolhedor, cheio das regras que lhes faltavam, empenhado no exemplo dado de trabalho e entrega. Tinha de ser um afecto para o desenvolvimento, pois a remediação não os tirava da vida cinzenta e só com empenho e esforço conseguiriam avançar para outras luzes. Recordo um aluno que estava com uma família de acolhimento pois dos 2 aos 3 anos era deixado num quarto com água e bolachas durante mais do que um dia enquanto a mãe, prostituta, se ausentava para fora, às vezes da cidade. Não falava quando foi acolhido. Não sabia como (ninguém falava com ele). Ele estava sempre connosco no CRE e tornou-se num exemplo de extraordinário desenvolvimento. Éramos professores sim . Mas também o prolongamento da família que o acolheu. Aceito que há competências para cada instituição, que treinei o meu afecto nesses anos, como um bom médico educa o seu, interpondo a necessária distância para ser um bom e concentrado curador, sem o envolvimento excessivo que turva a objectividade da tarefa. Mas confesso que, em certos momentos, a escola se fundiu com a acção social em falta, e deu muito mais do que constava no seu "estatuto" para ajudar quem precisava.
Com todas as indefinições, não me parece um erro. Talvez a escola que queremos, seja isso mesmo, uma escola que faz o que tem a fazer por "estatuto" (seja ele qual seja ou venha a ser) mas que também é humana e reaje aos contextos procurando soluções (mesmo quando tem de suprir uma ou outra falha da sociedade). Pode não ser a sua função, admito, mas se conhecessem muitos dos meninos que me passaram pelas mãos... perceberiam por que razão, tantas vezes, subvertemos essa função e demos mais... muitas vezes com bons resultados.
Um dos meninos (currículo alternativo) que apoiei no Centro de Recursos, trabalha hoje na empresa que traz os bolos à nossa escola. Está bem e feliz. Encontrou o seu caminho. Segreda que tivemos culpa nisso. Se o tivessem conhecido, percebiam porquê.
Como fui desfiando o novelo sem olhar para trás, termino dizendo. Isto da escola e do professor "em teoria"... de um estatuto possível, um quadro ideal, uma ambição para deveres e funções estabelecidas a rigor é desejável... mas a realidade obriga-nos a ser criativos. A reagir à medida do contexto. A humanizar. Porque, afinal, é tudo gente. Apenas gente. Surpreendente e imprevisível. Haverá, então solução real e objectiva para esta realidade tão inconstante?

Fernando Reis disse...

Cara Isabel
Depois de ler o seu texto fiquei mesmo enovelado.
E a Escola não é, de facto, uma novela, é um novelo. Mas que palavra adequada!
A minha perspectiva está bem apresentada no texto que cita, de João Rangel de Lima.
Tentando ser sintético, direi que é necessário redefinir a escola. Devolver à escola as suas funções principais. E entregar algumas das funções que hoje se empurram para a Escola a profissionais qualificados e apetrechados para o desempenho dessas mesmas funções.
Eu não sou indiferente aos meus alunos, nem eles o são a mim.
Nunca.
Mas eu assumo-me como professor, e como professor de história. Por mais interdisciplinar que seja o meu trabalho, e eu sou mesmo é professor de história.
Não consigo aceitar que me empurrem para outras funções.
O meu trabalho já me dá muito que fazer, ocupa todas as horas que é suposto ocupar e muitas mais.
COmo é que posso ser bom professor de história, se tiver que ser também professor substituto de uma outra disciplina, orientador de estudo, animador de projectos e de tempos livres, psicólogo, etc. etc.
A Escola pode ter isso tudo, mas não podem ser as mesmas pessoas a fazer isso tudo.
Por tudo isto, há que redefinir. O que se pretende da Escola?
O que se pretende de um professor de uma área específica?
E o que se pretende do Ensino Básico, nos seus diferentes níveis, e do Secundário?
Demasiadas perguntas mal respondidas actualmente.
E os afectos? Os afectos fazem parte da vida, repito, e não devem constar de nenhum programa explícito.
Não consigo agora continuar, mas voltarei.
(A continuar)

emn disse...

Também deixei para outro dia a ponderação... porque este texto faz-nos reflectir ponderadamente sobre o ppel do professor...
Esse papel eu já o defini para mim há muitos anos. O que mais me incomoda é que me queiram atribuir outros papéis com os quais não me identifico e para os quais não tenho a mínima vocação... (guarda, custódia, vigilância, animação social)
Deixo também para outra altura os exemplos para corroborar inteiramente o que dizes, IC...

Teresa Martinho Marques disse...

Só para acrescentar, com receio de ser mal interpretada, que não defendo papéis para o professor que ultrapassem as funções de "professor" (entendo o conceito numa versão ampla, por lidar com crianças mais pequenas, mas o meu objectivo final são a Matemática e as Ciências, sem equívocos)... e não apoio esta estrutura de animação, substituição, acompanhamento de outros em detrimento do tempo que rareia para os meus cada vez mais. Quero ter tempo para os meus alunos, os que me são atribuídos, pelos quais sou responsável (sem detrimento do alcance que posso ter nessa função em direcção à escola e ao bem comum, é claro). Sempre tive esse tempo até este ano e foi nessa condição que, por vezes, foi possível fazer um pouquinho mais... pelos MEUS alunos. O que se está a fazer agora da escola é absolutamente contrário ao que defendo (se é que sei exactamente o que defendo... tenho muito mais dúvidas que certezas). Sei apenas que o "conceito de escola a tempo inteiro" não pode ter bons resultados (quando o ouço, parece-me que falta pouco para colocar na escola umas camas e definir turnos para acompanhar os alunos que são lá deixados a dormir). "Tempo inteiro" de escola não me parece ser uma solução. As crianças têm direito a experimentar espaços diversos no percurso de crescimento. E embora aescola seja um prolongamento da sociedade, ela não é a sociedade, não é a família, não é o espaço de lazer livre, ou a solução social para os problemas do país. Os afectos estão por todo o lado e têm formas diversas. Ao referir os exemplos de uma escola problemática é porque, mesmo considerando que a minha função de professora é uma determinada, era impossível ignorar um aluno carenciado, agredido pela família, ou uma criança assediada sexualmente que se nos confia... Não foram poucos os casos. Encaminhei-os, é claro, para quem de direito. MAs estive na linha da frente apenas por ter sido (eu e muitos) a primeira pessoa a quem as crianças recorreram... Não podia fechar os olhos. E, repito, eram todos alunos meus, não de outros com quem contactasse casualmente a propósito de um delírio minesterial a que querem chamar escola a tempo inteiro. Provavelmente ainda me enovelei mais... mas não faz mal. É como sou. Alguém com muito poucas respostas e cheia de perguntas.
(Acrescento ainda que foi por isto que consegui converter uma inútil hora de substituição num espaço de trabalho com a Matemática para as minhas turmas, de carácter facultativo, mas com uma frequência elevada (nunca menos de 15 alunos, já tenho tido 19, das várias turmas que me estão atribuídas). Dúvidas, estudo, actividades lúdicas, entreajuda, desenvolvimento... a Matemática está no centro do trabalho e o afecto, bem, o afecto disperso por entre as relações que se constróem está na origem, acho eu, da frequência elevada do espaço. Isso e o meu gosto por ensinar, o meu prazer de partilhar Matemática com eles.)