quarta-feira, janeiro 11, 2006

Aos "Engenhocas" - Uma memória (II)

(Continuação do post anterior)
O investimento (e desafio) na preparação das actividades do final do 1º Período foi na colocação nas mãos dos Engenhocas todas as tarefas de organização das mesmas.
O torneio de futebol, com a colaboração de um colega de Educação Física, teve participantes de todas as turmas - já não me recordo da metodologia, só me lembro que mobilizou várias e numerosas claques.
Para a quermesse (também uma ideia deles), angariaram nas turmas muitas ofertas de objectos vários, pedidos sob alguns critérios e todos registados num caderno. E a véspera, uma tarde a entrar pela noite, é uma das memórias mais marcadas que guardo da minha vida profissional. O Agostinho era o mais problemático, porque tinha com frequência, nas aulas, súbitos assomos de comportamento perturbado. A directora de turma apenas possuía um relatório médico vago, falava-se de uma suspeita de sintomas de esquisofrenia, mas ao certo nada se conseguia saber por parte da família. Por isso duvidámos do seu pedido de liderar a organização final da sala da quermesse, por isso começámos a observar com olhos incrédulos a sua iniciativa activa na marcação dos objectos, no registo organizado por categorias, na distribuição de tarefas incluindo o enrolamento de rifas, na meticulosa disposição segundo os critérios estéticos dele - que originaram uma grande mesa vistosa e apelativa. Preocupou-se também com folhas de registo para a caixa do dinheiro a entrar. (A verba que se obtivesse destinava-se a um melhoramento na escola que já não recordo qual foi). Em suma, a capacidade de organização do Agostinho foi uma revelação inesquecível e um espanto para os seus profesores quando a descrevemos.
A quermesse decorreu com sucesso e terminou em divertida animação decorrente da ideia de outro Engenhoca de leiloar os últimos objectos - fez rir professores e encarregados de educação e assim conseguiu despachar as sobras todas.
Não faltou, nas actividades do dia, uma visita à sala de professores, com discurso de votos de boas festas e distribuição de cartões.
Por último, um pormenor que faz sorrir: os nossos rapazes, habitualmente dos que maior vigilância requeriam no recreio, lembraram que ia haver visitantes, que era preciso assegurar a segurança e vigiar os alunos à solta para não haver perturbações, decidindo escalonarem-se para a vigilância (funcionários e professores que não se preocupassem...).

P.S. Integrar na escola pode não chegar a significar integrar na escola das aulas ou da maioria das aulas, aumentar o trabalho nalgumas destas e não ter atritos com professores. Trata-se de adolescentes à partida desconfiados dos adultos, que permanecem "de pé atrás", e os rótulos com que os professores os conhecem fazem que também alguns permaneçam de pé atrás, o que torna, nesses casos, o conflito ou atrito sempre à beira de acontecer.
Mas eles terminaram nesse ano o 2º Ciclo, já perto do limite da idade da escolaridade obrigatória, obviamente que houve atenção ao caminho que iam seguir, tivemos inicialmente notícias de todos, depois perdemo-los de vista.
Confio que experiências de valorização, em que sobretudo tenham oportunidade de se sentirem valorizados aos seus próprios olhos, não são inúteis.

Aos Engenhocas: Que, estejam onde estiverem, nenhum ande perdido, que todos estejam bem.

1 comentário:

Miguel Pinto disse...

Que experiência bonita, Isabel. A tua estória permitiu-me recuperar uma experiência análoga vivida no ano transacto com o meu grupo de “engenhocas”. Sinto tristeza por ver definhar a melhor face da escola…