Estou a ler o livro de memórias de infância de Alice Vieira (Bica Escaldada, 2004, Ed. Casa das Letras). Apeteceu-me registar o que, em dois dos contos-memórias (cada um com pouco mais do que uma página), me causou uma associação de ideias... nas diferenças com o Hoje - associações que me acontecem ao ler um conto não lendo nele apenas e à letra o que conta, mas lendo-o como que uma metáfora.
Em O Anjo, a autora conta que a avó Ana, que nunca fora à ecola, um dia, passava ela já dos 70 anos, anunciou, no silêncio de uma refeição: "_ Apareceu-me um anjo esta noite. (...) _ O anjo mandou-me aprender a ler." E prossegue Alice Vieira, um pouco adiante: "Nunca mais voltou a falar do assunto, que as mulheres nunca repetiam uma ordem ou um desejo: o que se dizia uma vez, dito ficava. Ela própria se encarregou de arranjar uma professora. (...) Se o anjo voltou a ter interferência na aprendizagem da avó Ana, não se sabe nem ela o disse. Sabe-se apenas que a avó Ana aprendeu a ler e a escrever no espaço de um mês. _ Foi o anjo - era a sua única explicação" E a autora termina logo a seguir o conto, assim: "Dizem que, desde essa altura, um anjo passou a velar pelos destinos das mulheres da nossa família. Entre a comunidade celestial devemos gozar da fama de sermos exemplarmente obedientes."
Em Cheiros Perdidos, Alice Vieira lembra o tempo "em que as coisas cheiravam àquilo que eram", os cheiros genuínos das maçãs, dos morangos, do pão, dos soalhos das casas... . Refere como as nossas casas hoje cheiram aos ""purificadores do ar"" que prometem vários aromas e "se ficam todos pelo mesmo odor plastificado a coisa nenhuma que, como toda a gente muito bem sabe, é o pior cheiro que existe à face da terra" (Sublinhado meu). E, quase no final do conto: "Acreditem que eu até tenho saudades do terrível sabor do óleo de fígado de bacalhau (antes de ele ter sido adocicado para os paladares das sensíveis crianças dos nossos dias), do azedo genuíno dos primeiros iogurtes (...) e da intragável canja de galimha, à qual, antes de partirmos para a praia, a tia Clara juntava o então indispensável óleo de rícino. Aquilo sim, aquilo eram sabores a sério, puros e duros. Aquilo (...) formava o carácter de uma pessoa."
4 comentários:
Isabel
Peço desde já desculpa por me afastar do assunto deste post. Mas, há males que vêm por bem: Enquanto esperava por uma chamada [estava no piquete daquela coisa da SEC, TE, ou TH…, não sei] para substituir um “extraviado” aproveitei o tempo para ouvir uma colega de Matemática acerca da formação contínua dos professores do 1º ciclo. Conversa puxa conversa e pude constatar que na opinião da colega os programas do 1º ciclo seriam uma parte do problema. Não serei capaz de reproduzir a argumentação científica mas deu para entender que os programas exigem capacidade de abstracção às crianças que não se coadunam com o seu estádio de desenvolvimento cognitivo. Gostava de ouvir a tua opinião e a dos colegas que frequentam esta animada tertúlia… E já que estou numa fase de desafios, aproveito para te questionar acerca dos constrangimentos que sentem quando procuram a articulação vertical dos programas no ensino básico. É que a expressão “temos de cumprir o programa” começa a ficar gasta. Ou não?
Miguel, até não te afastas assim tanto do assunto deste post como parece. Memória de infância: Lembro-me bem, na minha 4ª classe, daqueles problemas de Matemática (conhecidos pelos problemas das torneiras) que me torturavam porque não tinha outro remédio senão decorar como se fazia cada tipo pois era impossível nessa idade compreender a resolução.
Opinião 1 - Especificamente na Matemática, os professores do 2º Ciclo já ficariam muito satisfeitos se os alunos lhes chegassem apenas com o conceito de número natural, a saberem a tabuada e a fazer contas e SOBRETUDO A COMPREENDEREM cada uma das 4 operações, pois aparecem-nos muitos (o muitos é que é estranho e preocupante)que além de não saberem fazer uma conta de multiplicar ou dividir (o que é o menos, até há as calculadoras), não percebem quando as devem fazer, atiram para o ar, a uma pergunta num problema elementaríssimo: "Então que conta tens que fazer...?", respostas assim: "multiplica-se? Não? Então divide-se?" , como se fosse mera adivinha do que tenho escondido atrás das costas. Esta é uma 1ª realidade, Miguel, embora não a generalize, a minha escola conhece os alunos de um reduzidíssimo nº de professores do 1º Ciclo da zona).
2 - Fiquei descansada quando vi que a APM foi chamada a contribuir para o programa de (re)formação em Mat dos professores do 1º Ciclo, mas há uma coisa MUITO IMPORTANTE a ter presente: para iniciar o aluno num conceito abstracto de forma ainda muito simples e concreta, o professor não precisa apenas de saber o que tem que ensinar, precisa de ter ele o conceito matemático formado, sob pena de uma iniciação muito simples e concreta mas não adequada vir a tornar bem mais difícil corrigir ou prosseguir depois do que iniciar a partir de "tábua rasa"), isto é, como todos sabem em qualquer nível de ensino, o professor tem que saber muito mais do que aquilo que tem que ensinar aos alunos.
3- Deixo-te o endereço para um artigo importante sobre o assunto da formação em curso, nomeadamente sobre a questão do que o estádio de desenvolvimento das crianças não permite, do Inquietações Pedagógicas:
http://inquietacaopedagogica.blogspot.com/2005/09/imaginar-para-compreender-jean-piaget.html
P.S. Miguel, respondi assim de imediato e rapidamente ao ler o teu comentário, ao teu 2º "desafio" não respondi porque isso já tem muito que se lhe diga, sugiro que abras esse debate no teu blog, pois há assuntos em que digo uma coisinhas que penso em comentários, mas há "constrangimentos" para abrir o debate no meu - num post haveria outras coisinhas sobre o mesmo assunto que não quero dizer, aquelas coisas por ex. sobre as quais não é intelectualmente honesto pronunciar-me quando tenho "amostras" muitíssimo escassas. Aliás, talvez fosse mais pertinente falar de articulação horizontal entre as diversas disciplinas (programas, MAS não só)
A questão da articulação vertical e horizontal merece um outroolhar mais atento e, preferencialmente, mais participado.
PS: O trabalho de piquete está a afectar-me a memória: é que não me lembro de ver esse texto no Inquietações Pedagógicas. :)
Bom fim-de-semana.
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