segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Pegando noutra ponta dos novelos

Hoje decidi começar pela observação mais directa de todas - a auto-observação. E com uma pergunta a mim mesma: Que efeitos teve a actual política educativa na minha pessoa?...

... Porquê, em dois ou três meses, mudei o meu projecto de vida no tempo próximo?
Em meados do ano lectivo passado soube que tinha todas as condições para pedir a aposentação - soube, mas não liguei, eu queria continuar. Nem ligou a minha escola, onde acham que a idade no meu BI não condiz muito comigo. Nem ligaram filhas e amigos, que não me vêem a ficar inactiva. E continuei a querer continuar, em Julho e em Setembro, apesar das novas medidas para a "educação", mas ao fim de três meses deixei de querer - não ia abandonar as minhas turmas, só por isso é que espero até ao final do ano lectivo.
Claro que a idade pesa, tem seus efeitos, mas não vem para o caso porque, sem percalços de saúde, não há mudanças assim tão grandes em três meses (e continuo sem parar na sala de aula, e isso não me cansa - de aulas mesmo mantenho a redução que a idade e o stress da profissão requerem). Ando cansada por mais horas de trabalho, mas com isso ainda vou podendo (não me couberam tarefas que odiaria fazer sem sentido e, das que tenho na nova componente não lectiva, umas já tinha, embora com direito a redução, outras faço com gosto, têm sentido para mim, tal como todas as coisas que fiz ao longo dos 36 anos de serviço com muito mais tempo voluntário na escola do que o do horário de permanência obrigatória nela).

Qual, então, a causa de ter passado, em escassos três meses, de uma ainda inadaptação à ideia de me reformar para uma inadaptação à de continuar? Percebo claramente que a causa é um clima que vem de fora das escolas e também, mas em menor grau como causa, um ambiente que pressinto nelas de alguma forma afectado por esse clima exterior - não se trata de ambiente no âmbito de relações humanas, nesse âmbito continuo a estar bem, quer com colegas (incluindo os do CE), quer com funcionários auxiliares, quer com alunos (estes estão mais difíceis, mas não é nesse âmbito).
E o clima que refiro... que clima é esse, que vem da governação na educação-ensino, que se propaga através de alguns insuportáveis artigos e debates na comunicação social, e me intoxica? É um clima que, por um lado, me gera a sensação de opacidade impedindo-me de discernir algum trigo que possa haver entre o muito joio, e que, por outro lado, tem geadas e granizos a agredirem a minha inteligência. A minha - será portanto uma agressão subjectiva, cada um tem a que tem, a minha é a que for (mas foi-me servindo pela vida) e até pode andar em crise, ela ou a lucidez. Mas, como estou a reflectir e a discorrer sobre mim, a olhar o que causou a súbita e imprevista mudança do Quero ainda Continuar para o Já não Quero, e não vou pedir outra inteligência emprestada, a que tenho (suficiente ou insuficiente), essa anda mesmo a ser demasiado agredida por facetas de uma política educativa eivada de prepotentes voluntarismos, pela condução do sistema educativo ao sabor de experiências à toa, pela sensação de que neste país de tantos homens e mulheres lúcidos e estudiosos se consente às mediocridades a condenação a um país medíocre.

Não importa muito que não esteja numa fase lúcida, que afinal tenha eu um cisco a mediocrizar a minha própria visão, pois isso é inócuo - não estou em nenhum lugar que influa nalguma coisa significativa, não tenho essa responsabilidade, o trabalho profissional pelo qual sou responsável não tem a ver com isto e esse sei que não o faço mediocremente. Importa sim, exclusivamente para a minha pessoa tal como é, o que sinto. E a minha pessoa não suporta nada imposto prepotentemente, sem diálogo, sobretudo sem explicações visivelmente fundamentadas (fundamentos não são opiniões, não são ideias individuais ou de uns tantos ao sabor do Quero, Posso e Mando - fundamentos são alicerçados em análise, em métodos de avaliação fidedignos, em estudo e conhecimento aprofundado das realidades.

E por esta ponta do fio eu vou a algum lado: Posso andar, estúpida, a avaliar mal a política educativa, mas numa coisa me desbaralho - perceber que não me adapto, que não me acomodo e que, tendo atingido sobejamente a idade de não lutar mais pela escola (pelo menos permanecendo nela), vou mesmo sair do ambiente nebuloso, sempre detestei ambientes nebulosos e já não cabe a mim pegar numa das muitas lanternas necessárias para que a luz desfaça opacidades, exija transparências e penetre nos alicerces a refazer. Numa vida de lutas e teimas, também pela escola e pelos alunos, as lutas e as teimas não acabam (sob pena de a pessoa acabar por dentro antes da hora de acabar por fora), mas a profissão tem um tempo, e estes meses do corrente ano lectivo fizeram com que esticá-lo, entre o limite de direito e o limite obrigatório, passasse, de desejo e gosto, a ser masoquismo.

Motivo só subjectivo? Se se verificar que sim, ainda bem para os que ficam e ainda bem para os alunos deste país - terá sido só um mau e infeliz ano. De qualquer modo, ficará o facto de que muitos (não só eu) estão a decidir ir embora por causa dele, apesar de, na maior parte, isso implicar prejuízo monetário para o resto da vida (o que não é o meu caso).
Serão mesmo os que já não fazem falta?

12 comentários:

Teresa Martinho Marques disse...

Isabel, esta tua entrada corroborou algo de que falei este fim de semana ao Cara-Metade: os mais desalentados com o presente momento são os que sempre deram muito. O teu exercício de auto-análise ajuda a perceber como é possível continuar a ser-se quem se é, mas sentir simultaneamente uma tristeza que não se sabe de onde vem. Sabes onde vou sentindo a diferença? Sempre me liguei muito à escola no seu todo, equilibrando a dádiva à organizaçao e a dádiva aos meninos. Dou comigo agora sem paciência para a "coisa" da escola (muitas tentativas caem em cesto roto) e obsessivamente concentrada nas "coisas" dos meninos e da Matemática... Eles agradecem, é claro e eu lá vou tentando arranjar forças para o resto, para a luta por melhores dias, mais diálogo, mais escola. Temo que possa não ser só mais um ano mau, mas o princípio do fim. E os que sempre estiveram presentes mas vão partindo aos poucos (mesmo ficando, porque a idade a isso os obriga) serão mesmo os que já não fazem falta?
Os que não fazem falta... acho eu... são os que sempre estiveram invisíveis. Não é o teu caso. Não é o caso de muitos excelentes professores. Eu, optimista, me confesso:tenho medo do futuro.

«« disse...

Querida Isabel, concordo contigo e digo-te mais, se em vez dos 41 anos, tivesse 31, deixava-me de lirismo e mudava de profissão.

matilde disse...

Bem, este post, e estes dois comentários anteriores deixam-me pensativa... [não se preocupem que a culpa não é vossa... já estava... ;)]...
Na verdade, essa concentração mais nos "meninos" (que soponho que os meus já não gostem muito de ser tratados por meninos...lol) e na Matemática é algo que me é difícil, dado a estar no CE... (na boca do lobo, portanto...lol)... - ainda bem que existem os blogs, que também contribuem para me continuar a sentir perto das aulas de Matemática...

Por outro lado, ainda nem tenho (por pouco) 31 anos... o que me deixa pensar no comentário do Miguel...
Mas não - não tenho qualquer dúvida de que me manterei na escola.

Mas penso compreender muito bem o que sentes Isabel... Uma vida dedicada à educação e de repente parece que tudo desabou num constante desacreditar na profissão docente, nomeadamente por parte dos que mais deveriam acreditar e apostar nela - os responsáveis nacionais pela Educação.
Nem todas as medidas implementadas serão negativas, mas é-o de certeza a forma como chegaram às escolas e aos professores. É-o de certeza a forma como são faladas na comunicação social mesmo antes de as escolas terem qualquer conhecimento da sua existência.

Olhando para a frente, tenho de continuar a acreditar sobretudo que a grande maioria dos professores está pelos Alunos e pela Educação, e não por políticas que vão e vêm com o passar dos anos, assente em medidas que partem de ideias em vez de factos concretos, factos estes que não podem ser conhecidos quando os processos anteriores não foram avaliados.

Não esqueçamos que, independentemente de tudo o resto, é o professor que está na sala de aula com os alunos, e aí temos de continuar a acreditar que podemos fazer muito por eles.

Um bjnho Isabel e força para o resto do ano :)

Matilde

Madalena disse...

Isabel, a tua lucidez é prova de que ensinar faz bem e é bom. O teu desgaste (e o meu, o nosso, pois) não tem a ver com o exercício do nosso ofício mas com a poluição de todo o género que nos impede de respirar e trabalhar com gosto. Eu tenho de tentar, porque ainda me faltam 11 anos. De seis passei para doze e agora já arredondo para onze. Um beijinho para ti!
Obrigada pelas visitas e pelo abraço que lá deixaste hoje. Quanto à corrente, já tinha respondido mas eu arranjo outras idiossincrasias, tá?

Anónimo disse...

e eu com 42, só queria que me possibilitassem fazer os meus próprios descontos, para ser eu a decidir da minha reforma...
E se pudesse ser hoje, era mesmo já hoje. Voltaria depois quando percebessem que a prepotência e autoridade nunca 'ensinaram' ninguém.

Hoje voltei a estar especialmente zangada... e triste...

Avozinha disse...

Pois eu, que há uns tempitos atrás estaria agora a dar o meu último ano, vou ter que aguentar um ror de anos extra. E não me importava de ir deixando uma vaga para alguém mais novo!

IC disse...

Depois de escrever, percebo que não foi um escrito nada estimulante para quem me leia e anda stressado ou desanimado com este ano lectivo, por isso acrescento (e talvez transforme este comentário num post num dia próximo): Não esqueçam que a idade e a altura de direito à reforma torna tudo diferente. Há cansaço de 36 anos da profissão, que começou no tempo em que as minhas aulas eram ecutadas à porta (mas não deixei de fazer o que queria e como queria, só com o cuidado de não falar directamente de política, mas isso continuei a não falar nas aulas), que nesse tempo sufocava neste país mas ele acabou mais depressa do que se esperava, que, com outros, lutei por muitas coisas na escola e na Matemática que chegaram a ser assumidas pelo ME, depois deixaram de o ser com outro governo, depois voltaram a ser (por ex., na Matemática, lembro Paulo Abrantes, que nos deixou cedo, mas o seu trabalho ficou), lembro, enfim, que os avanços são sempre feitos também com passos atrás, que muitas vezes é preciso as coisas ficarem tão mal para que a consciência disso se generalize e haja o movimento aguerrido a transformar. A vida é assim, um momento mau, depois a mudança. Se eu tivese menos 10 anos não escrevia com o tom com que escrevi - denunciava, mas... quanto mais "raiva", mais "genica"...:).
A prova de que penso o que estou a dizer é o comentário da Tit no post acima - sim, depois de ter escrito tinha ido ao blog dela e deixara lá: "Na minha humilde opinião, "E como é que isto se faz?!"... faz-se esperando sempre, sem desistir de esperar :)
(Eu sei que esta nem parece opinião de quem acabou de pôr um certo post, mas é)".
Abraço a todos e... FOOOOORÇA! (Se puderem "dar" na Milu com mão pesada, dêem também - cá por mim, não deixará de receber uma missiva no dia em que me reformar - essa é uma decisão que tenho na cabeça e ninguém ma tira [riso]

IC disse...

P.S. Até parece transmissão de pensamento, vi agora, ao ir fazer o copy do meu comentário à Tit, que ela hoje também lembra Paulo Abrantes... isto na blogosfera está a parecer magia!

matilde disse...

É bem verdade... tava a pensar o mesmo, agora que li este o teu comentário :)

«« disse...

Querida Isabel (permite-me esta pousadia, porque é o que sinto por ti) não penso desistir, mas se tivesse 31 pensava em fazer outras coisas. Agora, como já tenho os tais 41 a Milu e a banda dela, vão ter que me aguentar...e, modestia à parte, os meus alunos ficam contentes por me terem lá. Julgo que a garra com que escrevo ilustra que anod nesta coisa pela causa...não a perco, mas perco o brilho nos olhos, a esperança que sempre tive (e tenho) de mudar o mundo. O mundo dos meus rapazes, que se tornam em filhos, não de sangue mas de companhia neste mundo que de bonito tem essencialmente, a paisagem (se possível, sem Homem). De facto ando amargurado com a minha profissão, que escolhi com convicção. Sem fazer deste comentário um drama, devo-te dizer que pela causa carrego a cruz da milu e de todos os que a antecederam...

Teresa Martinho Marques disse...

"Eu, optimista, me confesso: tenho medo do futuro"... mas já ando nisto há quase 22 anos e, como dizes, Isabel, o tempo vai trazendo de tudo e ainda aqui estou. Estarei. Desta luta faremos uma espécie de homenagem ao Professor: mulheres e homens, heroínas e heróis anónimos e imprescindíveis. É que nós ficamos. Eles passam. E os alunos precisam sempre de nós (não deles).
Fica descansada que trataremos de lhes dar todas as dores de cabeça possíveis... Com inteligência, esperança e persistência.
Ter medo do futuro é um condimento fundamental para poder lutar por dias mais claros. O optimista alienado senta-se imóvel. Acredita apenas e espera sem agir. Não é coisa saudável.
P.S. Magnífica ideia essa da missiva... depois faz uma carta aberta para nós, 'tá?
Beijinhos.

emn disse...

O meu 'triste e zangada' do post anterior, prendia-se com o desânimo que sinto em relação apenas ao sistema e a quem o regula, que me leva por vezes (e por pouco tempo) a baixar os braços, perante tanta surdez e prepotência. É difícil fazermo-nos ouvir por alguém que tapa ferozmente os ouvidos e USA a opinião pública para fazer valer as suas ideias idiotas.
Continuo zangada.
Continuo de braços em baixo, porque triste.
Mas... só até os voltar a levantar.