Preâmbulo, porque, antes de uma das reservas que porei a duas das medidas do Plano de Acção para a Matemática, quero tornar compreensível, a quem eventualmente leia os comentários que farei a esse plano em entrada seguinte à presente, o que tenho contra a imposição de certas redacções, ou seja, explico a quê chamo papelada. Não me refiro, claro, a redacções, mesmo morosas, de projectos que não são impostos, decorrendo da iniciativa de professores ou da escola.
Começo por recordar dois exemplos do que fui observando e me fez, bastante indisciplinada, alinhar o menos possível no que acabava por me levar a chamar papelada.
1º exemplo (começo por este, actual e de efeitos perversos, devido à designação "planos" também usada na Medida 1 do Plano de Acção para a Matemática, pretendendo-se, em ambos os casos, melhorar os resultados dos alunos): Os planos de recuperação.
Nenhum professor negará a pertinência de os conselhos de turma se debruçarem sobre medidas e estratégias de recuperação dos alunos com resultados insatisfatórios. E, apesar da tendência para o fechamento de cada disciplina em si própria, não deixavam os conselhos de turma de definir algumas medidas e até de aprovar determinadas iniciativas extracurriculares, após análise conjunta das respectivas situações. Com os malfadados papeis, impostos do exterior para controlo e pressão, bem como para ser dito por escrito o que devia ser assumido por todos - professores, alunos e encarregados de educação -, nos conselhos de turma de final de 1º e de 2º Período deixou de ser discutido conjuntamente fosse o que fosse, na quase inevitável necessidade de cada um preencher os seus espaços na papelada, de preferência em silêncio sobre o que ia escrevendo para não perturbar as escritas dos outros. Enfim, planos de recuperação sempre fiz constantemente no meu próprio trabalho individual, não me lembro de ter redigido algum, tinha era que pensar, preparar as aulas com os respectivos materiais e investir dentro delas - ou deveria andar com algum papel na mão (?) a dizer-me: Não te esqueças de trabalhar para o sucesso, controla-te!.
(Não tenho emenda, foge-me sempre alguma piadinha à inefável milu...)
2º exemplo (lembro este porque, embora pequeno face a muito mais papeis que foram posteriormente impostos, a designação "projectos" também usada na Medida 3 do Plano de Acção para a Matemática - embora, obviamente, eu nada tenha contra a ideia em si, pelo contrário - mo fez recordar dado que, a meu ver, não deixou de ter alguns efeitos perversos): Os projectos curriculares de turma.
Também nenhum professor negará a pertinência de um conselho de turma, a partir das características da mesma e dos seus diferentes alunos quanto a atitudes, desempenho escolar e outras, definir objectivos prioritários e estratégias de actuação comum ou convergente, adequadas/adaptadas àquela. Igualmente me parece inquestionável a necessidade de contrariar tendências das disciplinas se fecharem em compartimentos, criando-se (ou melhorando) perspectivas de inter e trans disciplinaridade a concretizar na prática.
Não era necessária, em tempos quiçá já passados, a imposição da redacção de um documento intitulado Projecto Curricular de Turma, extra ao que se registava em acta no âmbito de objectivos e estratégias ajustados à respectiva turma, para que, no geral dos conselhos de turma, se definissem prioridades de acção e se identificassem os contributos de várias disciplinas para concretização de projectos da ou com a turma. Será verdade que se ficava aquém do desejável, quer reduzindo-se a ideia de interdisciplinaridade para apenas multidisciplinaridade, quer ficando-se, no âmbito de prioridades, por discussão de pouco mais do que estratégias para criação de ambiente de aula indispensável à aprendizagem face a problemas de comportamento/disciplina, permanecendo a confinação de cada disciplina a si própria no desenvolvimento de competências nos alunos, apesar de estas não passarem apenas pelas competências muito específicas de cada disciplina. Mas, também é verdade que, sendo os conselhos de turma de final de período demasiado preenchidos pelo que é prioritário fazer neles, os conselhos intercalares, que seriam oportunidades privilegiadas para cumprirem melhor as finalidades desejáveis, dispõem de insuficiente tempo, nesse seu encaixe, ao longo de duas, três ou mais semanas, nas horas de que as escolas podem dispor para reuniões, já bastante ocupadas pelas do CP, dos DCs, do CDT, etc.
Neste quadro, a imposição de um projecto curricular de turma formalmente redigido só veio, até pelo remar contra o tempo, provocar recurso a modelos previamente feitos e usados em todos os conselhos, em boa parte preenchidos antecipadamente pelo director de turma, e completados nos conselhos mediante a passagem a primeiro plano de redacções que era necessário caberem no tempo já escasso, para ficarem como papelada que ninguém volta a ler porque, ou bem que o seu conteúdo já estava na cabeça dos professores antes da redacção e nem a posterior leitura nem a própria redaccão extensa lhes são necessárias, ou bem que (ou mal) não se estabeleceram em cabeças, com o contributo de todos, e essas menos ainda se lembrarão de ir ler. Papelada que, em suma, pelo efeito que têm documentos obrigatórios e com prazo nem sempre adequado, acaba por pouco contribuir ou acrescentar, antes desvia de (ou deixa ainda menos tempo para) intervenções no sentido da desejável maior sensibilização para as perspectivas inter e trans disciplinares que referi.
Já me alonguei demasiado e vou alongar-me ainda mais, mas este meu cantinho é de memórias, são muitas vezes elas que intervêm na minha escrita, além de que escrevo para exprimir e guardar aqui o meu pensamento independentemente de alguém ter paciência para ler.
Compare, cada um que me leia, o que significa um departamento de disciplina, empenhadamente, analisar, discutir/reflectir conjuntamente e decidir quais as estratégias e medidas a adoptar, bem como os meios necessários, compare, dizia, com o seu próprio planeamento de aulas, individual ou em trabalho colaborativo, quando empenhado. Pense como planeia as suas aulas, tantas vezes continuando em momentos ou lugares insólitos tais como já estar na cama para dormir e, na mente, ter aquela turma difícil, ou aqueles desastrosos resultados em testes que acabou de corrigir, ou aqueles alunos que já pensava "agarrados" no caminho da autoconfiança e da motivação e que lhe estão a "fugir" outra vez. E, lembre-se agora dos planos que, no estágio, não ficavam só na cabeça e nuns tópicos no papel, mas eram morosamente redigidos para o orientador analisar e poder formar - nessa altura, sim, redacção morosa mas útil porque se tratava ainda da aprendizagem do que significa planear uma aula organizada, consciencializar objectivos, perceber didácticas adequadas às idades e fazer um percurso de autonomização na concepção das diversas estratégias possíveis face a turmas e alunos diferentes; pense, então, no que seriam, depois, os seus anos de trabalho profissional se os seus planos, ao preparar as aulas ou, por exemplo na situação que referi de até já estar na cama ainda com os alunos na cabeça, requeressem redacção, e acrescento dela saltando da cama, em "formato" com todos os rr e ss de um documento formal. Seriam anos infelizes e desmotivadores devido à papelada, certo?
(Em Setembro último, como coordenadora de Matemática do 3º Ciclo, até levei redigidas, para o Grupo, "Prioridades para o Ano Lectivo de 2005/2006", incluindo a sua justificação decorrente da nossa análise da situação, as quais foram discutidas, apoiadas e cumpridas, mas as duas páginas e meia, corridas (e que não devem as minhas colegas ter precisado de andar a reler, pois o conteúdo era nas nossas cabeças que estava), teriam que ser "formatadas à maneira" se se destinasem a enviar e submeter ao ME, em muitas mais horas do que as do serão em que as escrevi).