Apenas uma memória
(Alguém - já não consigo precisar quem - contava que, pensando em debates com alunos sobre valores, uma aluna dissera que pertencia a uma juventude sem valores. Eu vivi acompanhada por uma geração - ou várias seguidas - norteada por valores; hoje, entre muitos jovens que ainda vemos/ouvimos defendendo valores de sempre, já me aconteceu ouvir directamente a um ou outro (crescido, estudos já cumpridos) respostas que se podem resumir assim: Quais valores? Com os vossos (vossos, leia-se os dos velhotes) não me safo; mas isto tudo já aconteceu numa só vida em que ainda posso esperar ter tempo para observar uma terceira, nova fase).
Era o ano lectivo de 72/73 - o meu 3º ano de ensino no então chamado Ciclo Preparatório - numa escola de Lisboa (Leccionara antes um ano, mas no ensino nocturno, a adultos, numa escola do Barreiro). "Novas correntes pedagógicas" chegavam do exterior - a censura não via motivos para se preocupar com assuntos de mera pedagogia. Eu ainda não tinha ligações políticas, funcionava "inocentemente" de forma natural e intuitiva, apenas, na escola, tinha afinidades "profissionais" com duas colegas que, embora suspeitasse, só de facto soube no 25 de Abril que tinham contactos clandestinos.
Suponho que bastantes professores, com suporte nas (ou a pretexto das) novas correntes pedagógicas, proporcionaram aos seus alunos vivências democráticas na sala de aula, à revelia de uma sociedade interna não democrática. Eu, embora considerando já a metodologia do trabalho em grupo especialmente adequada à aprendizagem da Matemática, também não me limitava ao objectivo dessa aprendizagem. As alunas participavam na análise do funcionamento das aulas, havia assembleias de aula (não me lembro se já lhes chamava assim), e também assembleias de turma no âmbito da direcção de turma. Mas os temas não excediam as questões escolares (só de vez em quando elas abordavam o autoritarismo do ensino noutras aulas), pelo que não chegava a ser uma professora suspeita - soube no 25 de Abril que a directora tinha o cuidado de se certificar disso indo de vez em quando escutar à porta da minha sala de aula, situada no fundo de um corredor.
No entanto, um dia, depois de eu ter promovido, a pedido das alunas da minha direcção de turma, uma reunião com todas as professoras da turma (reunião que estas não tiveram argumentos para recusar mas prepararam de modo a inibir as alunas de colocarem as questões que queriam), a directora quis falar comigo, e a pergunta que me ficou na memória foi: Não acha que não está a preparar as suas alunas para a sociedade em que vivem? Respondi apenas que não, que não achava, e a conversa ficou por aí.
Talvez, de facto, não estivesse a prepará-las, talvez as vivências democráticas da sala de aula fossem decepcionantemente cerceadas na sociedade a que, mais crescidas, teriam que adaptar-se - sociedade que muitos ainda esperavam que permanecesse. Mas, apenas um ano depois acontecia o 25 de Abril.
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Nada É Impossível De Mudar
Desconfiai do mais trivial , na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.
Bertold Brecht
3 comentários:
A única coisa que me apraz dizer é que a vida é uma bola colorida... :D
Sendo mais nova que a Isabel, noto que em relação ao meu inicio de carreira (99), os alunos estão menos empenhados nos seus valores... mas quando chega a altura de os defender, agarrram-se a eles com unhas e dentes! Alguns deles são bem mais conservadores do que esperava!!
Eu comecei em 67 :)
Revejo-me neste seu post (de uma era prenhe de liberdade)
Inês
Inês, obrigada pela sua visita e pelo seu testemunho :)
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