Eu dava habitualmente aula numa 'sala de Matemática' bastante pequena, pelo que, a menos que frio e vento o não permitissem, mantinha a porta aberta para que o ambiente interior não ficasse abafado. A porta dava para um dos pátios da escola.
Um aluno que eu não conhecia, daqueles que se escapam às aulas e andam fugindo à vigilância dos funcionários, passou, parou, entrou mesmo um pouco para além do limiar da porta, para lançar "bocas" provocatórias para a turma, tendo também uma atitude algo provocatória para mim e não me obedecendo à ordem de ir embora. Mas, quando, logo a seguir, me aproximei para lhe falar, fugiu sem arriscar saber se eu iria apenas dialogar ou chamar um funcionário que o encaminhasse para alguma admoestação com maiores consequências. No entanto, não desisti e exigi que fosse levado à minha presença.
Veio com ar hostil e resmungos até eu lhe poder dizer que apenas queria conversar - "Nem nos conhecemos, não podemos conversar?" Pedi-lhe então que pensasse e me respondesse sinseramente o que sentiria e faria se tivesse a porta da sua habitação entreaberta ou esta tivesse uma janela acessível da rua e alguém, sem o conhecer nem à família, aproveitasse para tentar entrar e faltar ao respeito, a ele e aos pais. A resposta pronta foi: "Ia ter que se haver comigo!" (Uma resposta provável, se fosse um aluno mais novito, seria "ia ter que se haver com o meu pai"). Pedi-lhe que me confirmasse se isso queria dizer que considerava ter o direito a que lhe não faltassem ao respeito, a ele ou aos pais, adultos. Resposta afirmativa e, nesta linha, continuou o pequeno diálogo, terminando o mesmo com um "está certo" e a promessa de não repetir a atitude que tivera perante a minha aula.
O mais certo é que tenha continuado a não resistir à tentação de portas de aula abertas, mas lembro-me de ter voltado a passar umas duas vezes junto da minha sala e, ao encontrarem os seus olhos os meus, fazer um aceno de mão como quem, simultaneamente, diz adeus e comunica um "está tudo bem, não vou perturbar". E lembro ainda muito bem de atravessar um dia o recreio, ouvir um "olá stôra" e deparar-me com o olhar do moço, isento de hostilidade.
Afinal, foi apenas uma questão de raciocínio...
Tratava-se de um daqueles alunos que rejeitam a escola e entram nela de pé atrás e "sete pedras" na mão, prontas a atirar a qualquer adulto, funcionário ou professor, numa agressividade que mais não é que a forma que têm de se afirmarem e de extravasar a revolta escondida que as suas condições de vida fazem trazer dentro de si. No entanto, esses alunos sabem raciocinar como os outros, recusam é, em geral, fazê-lo, a menos que não sintam qualquer hostilidade da parte de quem tenta conversar e sintam até cordialidade.
[Mas, notem-se duas coisas. A primeira é que a sua permanente desconfiança os faz perceber hostilidade mesmo quando não há (por isso é menos difícil que adiram a um diálogo com alguém que não é seu professor pois este, provavelmente, já teve que repreender severamente, já teve que se zangar, dado que sabemos como são os comportamentos que estes alunos reincidentemente experimentam ter nas aulas).
A segunda nota, é que o professor é um ser humano como os outros, nem sempre consegue controlar uma imediata irritação e impulso para punir. Ninguém é perfeito, eu de certeza que estou muito longe disso, também tal me aconteceu noutras situações - no entanto, a experiência foi-me facilitando o hábito de distinguir, sem descontrolo, face a um mau comportamento ou um início de falta de respeito, os casos em que até é adequada uma "zanga" imediata e, enventualmente, alguma punição (não há nenhum aluno que não precise de firmeza e que até não a aprecie se a sentir justa e não aliada a sentimento de que o professor não gosta dele), distinguir, dizia, das situações em que tal não é (pelo menos de imediato) o caminho eficaz, antes dando azo a uma reacção que agrave o comportamento havido.]
Infelizmente, alguns vão crescer e tornar-se adultos assim agressivos, já que a vida (e as políticas "sociais") lhes dão pouca oportunidade de se afirmarem de formas mais positivas - como também outros adultos são agressivos não pelas condições de vida em que cresceram, mas por alguma experiência de que não sabem libertar-se e lhes bloqueia o bom senso e o raciocínio, tornando-os frustrados e azedos contra tudo e todos.
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When I Grow Up