quarta-feira, abril 26, 2006

Memória remota: Sala de professores

Comentário prévio
Este blogue dizia-se de memórias... afinal está é cheio de ano lectivo 2005/2006! Até parece um caixote de partes para um documentário a tornar um dia memória... só se for para o ligar à tecla delete e carregar nela!! (Era o que faltava, milus a ficarem na história!!!)
(Não sei se foi por voltar à minha actual sala de professores na 2ª feira depois de uma interrupção prolongada que me ocorreu a memória tão antiga que se segue)

Sala de professores (aliás, de professoras)
Comecei a leccionar no ensino nocturno, na então Escola Comercial e Industrial Alfredo da Silva, no Barreiro. Mas passo por cima desse ano, não porque não tenha sido uma boa experiência, mas porque, apesar de reconduzida, interrompi no ano seguinte (por circunstâncias e razões que não vêm para esta memória).
Quando voltei a concorrer era mãe, evitei escolas com ensino nocturno, o Secundário era a minha perspectiva de futuro pelo gosto de trabalhar com adolescentes, mas iniciava-se a reforma Veiga Simão, a colocação fácil era no Ensino Preparatório.
Ao entrar, jovem e quase pricipiante professora, na pequena sala de professoras da escola hoje chamada Almirante Gago Coutinho, em Lisboa, fui bem acolhida e logo integrada no exíguo grupo das colegas de Matemática. A Vitória era um bocado mais velha do que eu, a Luísa só um bocadinho. Ambas grandes entusiastas do ensino da disciplina. Embora houvesse, para apoio ao recente programa, uma brochura do ME com orientações e sugestões didácticas pormenorizadas, nos intervalos elas falavam constantemente das aulas (nós falávamos, pois o nós aconteceu depressa). Não me lembro de haver reuniões de disciplina, mas não fizeram falta nenhuma, afinal estávamos frequentemente em reunião, outras colegas iam dizendo, sorrindo: "lá estão elas com a Matemática". Não só com a Matemática, aliás, pois as noções elementares relacionadas com a teoria dos conjuntos, prato forte no novo programa, prestavam-se muito à perspectiva da interacção matemática-português, que procurávamos explorar. E, embora sem estágio ainda, tal como a Luisa, funcionasse a intuição e eu tivesse autonomia e o "bichinho" de pensar e experimentar, essa sala de professoras onde fazíamos trabalho colaborativo não deixou de ser importante, permanecendo na minha memória, tão esquecida de nomes, os dessas primeiras colegas de Matemática.

Mas, o encontro mais importante de todos nessa sala foi com a Rosa, de Ciências. Era apaixonada pela metodologia do trabalho em grupo (note-se que, nessa altura, tinham entrada no país "as novas correntes pedagógicas", só não consigo lembrar se ainda limitadamente ou se à censura não ocorria que pedagogia fosse perigosa).
Não creio que alguém influencie outrém a não ser quando o outro já tem em si predisposição para o que o primeiro defende, o que era o meu caso em relação a um método em que a Rosa estava, até então, sozinha nessa escola. Ouvi-a e um dia pedi-lhe que me explicasse como conseguia o funcionamento das aulas com aquele mobiliário de carteiras de pares, tampos ligeiramente inclinados, carteiras não deslocáveis. Não recordo as palavras da descrição, mas posso resumir assim: As miúdas arranjam-se, gostam e inventam os expedientes, pernas para trás, pernas para a frente, cadernos para trás, cadernos para a frente...
O encontro com a Rosa foi extremamente importante, sobretudo porque sem essa informação do gosto das miúdas eu não me teria atrevido a fazer às minhas alunas a proposta de uma experiência que requeria o que me pareciam condições de trabalho demasiado incómodas. E foram elas que, entusiasmadas, me exemplificaram e convenceram que "era fácil".

Em suma, devido a essa sala de professoras onde se falava das aulas, de métodos e estratégias, eu esbocei ainda nesse primeiro ano de Ciclo Preparatório o que ficou para sempre o meu método de ensino-aprendizagem da Matemática nestas idades com que tenho lidado (método a que se deve, em boa parte, o meu atrevimento de ter incluído na descrição deste blogue "e segredos do ensino da Matemática nos 2º e 3º Ciclos"). Não tinha ainda contacto com os fundamentos teóricos do importante papel da discussão entre pares; e a dinâmica de grupo surgia então quase só por si. Também é verdade que, na altura, via nesse funcionamento mais o estímulo à cooperação, à ajuda e inter-ajuda, tal como via no funcionamento democrático das aulas uma oportunidade de vivência pelas alunas da vivência que o país não democrático não proporcionava. Mas foi uma iniciação logo no início, por isso esta memória é das mais importantes da minha vida profissional.

E aqui deixo também a minha homenagem à Rosa, que há tantos anos nos deixou. Vi-a fazer exames orais, era como se o seu encantamento pela botânica, como pela biologia, se estabelecesse entre professora e aluna, eram momentos lindos. Foi difícil compreender e aceitar, tão exuberante de vida te sentíamos, tão alegre que eras, quando a vida embirrou com tua alegria e decidiste parar aí. Saudades, Rosa!

12 comentários:

Teresa Martinho Marques disse...

Eu fico presa... sempre muito presa às tuas memórias presentes ou passadas...
Embalas-nos docemente e deixamo-nos ir. Comoveste-me com as palavras finais. Tinha de ser uma Rosa... as rosas parece que estão assim destinadas a encantar-nos, a prender-nos intensamente, durante pouco tempo. Tempo de menos.
Há gente que devia viver para sempre...
Beijinhos

IC disse...

Obrigada, Teresa, dás-me sempre mimo sobre os meus posts. Nunca mais começo é a escrever textos mais curtinhos, mas também não me parece que escreva nos próximos dias, ando sob pressão com o pouco tempo do 3º Período para os nonos anos e tenho três livros que quero ler e ainda estão em espera (mas não são sobre educação, "ando" pela União Europeia e quero "ir" à China... :)) )
Beijinhos

Miguel Pinto disse...

“Não creio que alguém influencie outrém a não ser quando o outro já tem em si predisposição para o que o primeiro defende”

Confesso que também me deixo embalar pelas tuas histórias, Isabel. Mas mudando de assunto, há qualquer coisa que me escapa nesta tua afirmação… Será uma interpretação da teoria das vocações? É aqui que entra a minha pequena provocação: creio que encontramos o busílis da aprendizagem a Matemática. Os alunos não têm predisposição para a dita cuja…. ;) oopsss…

tsiwari disse...

Que ternura deixa fugir pelo texto que escreveu...

lindo!


parabéns.

IC disse...

Tsiwari, obrigada pelas palavras e pelas visitas :)

IC disse...

Miguel, só agora vi a tua "provocação", está na hora de ir para a escola, logo respondo ;)

IC disse...

Miguel, eu referia-me a uma pessoa influenciar outra no plano das ideias que defende, mas tens razão, ensino-aprendizagem tem alguma relação com isso. Claro que há alunos sem predisposição para algumas disciplinas (como nós, adultos para estudar assuntos que outros adoram estudar), mas, não fugindo à questão, não tenho dúvidas que qq aprendizagem só o é de facto (e não colagens com cuspo para testes e exames) se for significativa para o aluno, se lhe disser algo, e a questão (difícil) está no professor descobrir o que "mexe" com ele, pode ser o gosto pelo desafio, a descoberta, o perceber num jogo de raciocínio, etc.
Isabel pensando: não me saio airosamente desta, devia ter dito que não respondo a provocações [risos]

Entretanto, talvez encontres um exemplo que não encaixa em teoria de vocações se quiseres ler um antigo post meu
aqui

matilde disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
matilde disse...

(carreguei numa tecla sem querer e fiz asneira... - ficou um comentário a meio, que apaguei - mas aqui vai novamente)
Obrigada Isabel pelo testemunho... Um trabalho colaborativo que sai da sala de aula e atravessa salas de professores reais e virtuais... É neste sentirmo-nos acompanhados que vamos reencontrando um prazer pela educação e pela escola por vezes um pouco adormecido...

Em relação à Matemática... às vezes não entendo mesmo... ainda hoje estive a dar uma aula de Matemática a duas turmas de 9º (de substituição... mas mesmo de Matemática...lol), e saí um pouco desencantada... A tal predisposição para aprender Matemática, ou para aprender outra qualquer coisa, não será fundamentalmente inata! Mas por vezes confesso que encontro alguma dificuldade em mostrar aos alunos um significado para aquilo que tratamos nas aulas (para de ir de encontro à ideia de aprendizagem significativa de que falava a Isabel e com a qual concordo a 100%).
A Matemática (ao nível do Ensino Básico)... impossível, em meu entender, olhá-la de um ponto de vista 100% real, 100% ligada a situações de interesse para um cidadão comum. Mas é certo que a Matemática tem também a vertente de jogo, de desafio, de raciocínio abstracto, de lógica - e essas noções não têm nem podem ser dadas de uma forma sempre ligada à realidade - daí ser por vezes difícil para os alunos de as entenderem...
Tenho noção que este comentário está um pouco confuso... mas é exactamente assim que fica a minha cabeça quando penso nas aulas, no insucesso, na desmotivação dos alunos... (não digo especificamente este ou aquela turma, mas sim um panorama nacional que se traduz numa tão frequente tentativa de fuga à Matemática no Ensino Secundário /Superior)
Daí gostar tanto destes espaços de partilha de ideias e de contágio de motivações... - e lembro a discussão que a Teresa Lopes trouxe à
Aragem
, a propósito da força dos blogues...

Miguel Pinto disse...

Ainda bem que respondes a (pro)vocações, Teresa. :))
"...qq aprendizagem só o é de facto (e não colagens com cuspo para testes e exames) se for significativa para o aluno, se lhe disser algo, e a questão (difícil) está no professor descobrir o que "mexe" com ele..."

hummmm... o professor terá de investigar o que é significativo para cada um dos alunos... Não é que discorde da ideia mas preciso de tempo para outro olhar. ;)

AnaCristina disse...

Ao perder-me nas tuas palavras, sabes o que me ocorreu, Isabel? O trabalho em grupo a nível de professores.

Sinto tanta falta dele, sinto falta da colaboração, da entre-ajuda...
Nos últimos dois anos tenho estado sozinha com um determinado nível e o trabalho em grupo acaba por não existir. Mas recordo em Serpa e em Vila Real e no ano de estágio, o trabalho de pares na preparação das aulas, das estratégias, de pensar nas coisas que resultam com esta turma mas não resultam com aquela...

Afinal nós também aprendemos!

IC disse...

Não acho o comentário da Tit nada confuso, obrigada por virem aqui conversar, para mim é estimulante e... o que está confuso de facto é a escola, os novos comportamentos dos alunos, o insucesso, a desmotivação, pois, bramamos que há insucesso, desmotivação e maus comportamentos ou indisciplina, mas, se várias causas são evidentes, outras começam a parecer-me confusas.

Miguel, a investigar, quando acabares estás em tempo de aposentação, eu ficava-me pela intuição, pela empatia, o que já é suficientemente difícil pois os putos são muitos em cada turma ;)

Quanto ao trabalho em grupo entre professores, Ana Cristina, se ele já se vinha perdendo, com as reuniões repletas de burocracias mais ou menos obrigatórias, ainda existe? Eu só consigo fazê-lo com a colega com quem dou nonos porque pedimos uma reunião semanal na componente não lectiva com o argumento da chamada de atenção qua se anda a fazer a nível nacional para a Matemática, mas, no fundo, tem mais a ver com a motivação ou desmotivação dos professores pois nós duas até "reunimos" pelo telefone. Tenho saudades das colegas, agora já aposentadas, que, apesar de cheias de experiência, queriam que eu (eu, só por ser coordenadora) convocasse informalmente de vez em quando reuniões extra para isso que dizes: troca de ideias sobre estratégias, sobre o que resulta mais... Não sei dizer se eram outros tempos, ou se é mera coincidência ou circunstância que me faz, pessoalmente, sentir diferença hoje.