Não procurei o texto para vir escrever no blogue. Ao contrário, não tencionava vir escrever, mas o texto caiu-me sob os olhos, qual alerta oportuno.
«(...) No mesmo vagão viajavam também muitos professores a caminho das escolas onde trabalhavam. Iam juntos, alegres e falantes... Por anos escutei o que falavam. Falavam sempre sobre as escolas. Era ao redor delas que giravam os seus universos. Falavam sobre directores, colegas, salários, reuniões, relatórios, férias, programas, provas. Mas nunca, nunca mesmo, eu os ouvi falar sobre os seus alunos. (...)
Participei no juri que examinou uma tese de doutoramento cujo tema eram os livros em que, nas escolas, são registadas as reuniões de directores e professores. A candidata dera-se ao trabalho de examinar tais reuniões para saber sobre o que falavam directores e professores. As coisas registadas eram as coisas importantes que mereciam ser guardadas para a posteridade. Nos livros estavam registadas discussões sobre leis, portarias, relatórios, assuntos administrativos e burocráticos, eventos, festas. Mas não havia registos de coisas relativas aos alunos. Os alunos: aqueles para os quais as escolas foram criadas, para os quais directores e professores existem: ausentes. Não, não era bem assim: os alunos estavam presentes quando se constituíam em perturbações da ordem administrativa. Os alunos, meninos e meninas, alegres, brincalhões, curiosos, querendo aprender, alunos como companheiros dessa brincadeira que se chama ensinar e aprender, sobre tais alunos o silêncio era total. (...)»
Rubem Alves (2004). Gaiolas ou asas. Ediçõas Asa. pp 121-122
Nota:
As minhas memórias de conversas entre professores não vão, não vão mesmo, ao encontro do que Rubem Alves conta das que ouvia. Pelo contrário, lembro-me que, até há tempos não muito distantes, nos meus convívios em que houvesse professores depressa estes estavam a falar das aulas e dos alunos, partilhando entusiasmos e preocupações, fazendo até os não professores protestarem: "Pronto, lá estão a falar dos alunos, vocês não pensam noutra coisa?".
Mas, no momento presente, quando estou com professores, é, de facto, só de decretos, despachos, e cansaços (de aposentação também) que se fala...
E pergunto-me: As minhas constatações, respectivamente no passado e no presente, correspondem a meras circunstâncias pessoais? Será que não revelam sintomas gerais de involução?
De qualquer modo, parece-me inquestionável que é preciso parar e inverter o actual rumo para o atolamento dos professores em papelada e em reuniões por causa de papelada. Cá para mim, governantes que não vejam isso ou estão cegos, ou têm os olhos muito desviados daqueles por causa de quem e para quem existem as escolas.