sexta-feira, julho 07, 2006

Intercalando

Antes de prosseguir nas memórias "Sortes e azares do acaso", trago hoje um caso que também ainda tenho na cabeça. É do ano lectivo que agora finda. É daqueles casos que, mesmo dizendo-me que um professor não pode conseguir tudo o que desejaria, não deixam de pôr na mente a palavra 'falhei'.

O R. foi meu aluno apenas neste ano. Veio para uma das minhas turmas do 9º com mais seis colegas (no ano anterior a turma tivera só 19 alunos, havia vagas para alunos transferidos ou repetentes).
Revelou-se um aluno com insuficiente desempenho, era muito pouco participativo e parecia não se esforçar em casa até pelos TPCs algumas vezes trazidos em branco.

Sete alunos novos, alguns repetentes, numa turma com diversos casos a requererem constante atenção individual, uns por frequentes recaídas no fingir trabalhar na aula e nem a fingir em casa, outros por lhes ser a Matemática difícil e o pedido de apoio um bom hábito, além de, no mais geral, ter os grupos funcionando em dinâmica já há muito adquirida, mas, claro, solicitando sucessivamente a professora e reclamando "stôra, então, agora nós!". Em suma, uma turma em que já não era fácil o tempo e a minha atenção darem para tudo.
Reorganizaram-se os grupos para integrarem os novos colegas, mas eram sete para conhecer depressa, que o seu 3º Ciclo já ia na parte final. E o R., que, ao contrário dos colegas, não chamava nem colocava dúvidas, omitindo mesmo o que não percebia quando eu ou os próprios colegas de grupo nos queríamos certificar, parecia comprovar nos testes a ideia de aluno pouco interessado e pouco trabalhador que acima descrevi.

Foi tardiamente que percebi que o R. tinha mesmo dificuldades, além das lacunas de anos anteriores que eu ia detectando - provavelmente transitara de ano para ano com nível negativo em Matemática. Pedi-lhe para não deixar de colocar as suas dúvidas e, já a meio do 2º Período, disse-lhe que lhe proporcionaria actividades de recuperação, teria era que corresponder com trabalho em casa - o que não teve ainda nenhum comentário sobre a minha ideia de que era pouco trabalhador. Procurei ir mais vezes junto dele e pedi particularmente a um colega de grupo que me chamasse (o R. não o fazia) quando achasse que ele ocultava que não estava a perceber algo.
Um dia... aconteceu o inesperado. O R., em resposta a um reparo que lhe fiz, mas privadamente, disse-me então que estudava muito em casa mas... "estudo, mas não consigo, stôra". Nunca me parecera que estudasse, no entanto não duvidei, percebi que estava a dizer só a mim o que nunca dissera perto dos colegas, e senti... senti o que julgo que sente qualquer professor que falha injustamente ao ajuizar sobre um aluno. Aliás, o seu estudo viria a ser confirmado pelo pai à directora de turma ao contar que o filho era muito preocupado, passava muito tempo com os livros e cadernos, muitas vezes não se queria deitar a horas adequadas porque queria estudar. Talvez não o soubesse fazer, é frequente detectarmos alunos que têm erradas estratégias de estudo, preocupados com memorizações não soltam o raciocínio e acabam por não perceber o que estudam.
O R. estava frágil em várias disciplinas, foi admitido a exame porque, dos três níveis negativos na avaliação interna final, dois foram em Português e em Matemática - ainda não se conhecem os resultados dos exames nestas duas disciplinas, mas é quase óbvio que reprovará neste seu 9º ano.

Pode ser verdade que havia um contexto que explica que a professora de Matemática (eu mesma, claro) tenha passado quase dois períodos com a ideia de que este aluno era dos que não se esforçam - ideia afinal decorrente de uma inibição que antes parecia ser um insuficiente envolvimento no trabalho nas aulas e de um silêncio sobre esforço para fazer vários TPCs trazidos em branco sem dizer que apagara por verificar que estavam errados. Pode ser verdade que, numa turma com certas características, o tempo não dá para tudo e que essas características dificultam que se repare que um aluno não é o que parece. Pode haver muita justificação que um professor dê a si mesmo. Mas... também é verdade que eu sei que há alunos inibidos pela falta de autoconfiança, por sucessivos insucessos numa disciplina como Matemática, por lhes custar dizerem que estudam mas não se sentem capazes. Um aluno diz-me tardiamente "estudo, mas não consigo, stôra" e fico surpresa, percebo que me enganara no juízo que até aí fizera. Será verdade, como já disse, que o tinha a ele e mais seis novos para conhecer e intuir já num nono ano e numa turma cheia de solicitações. Mas... deixei-o no único grupo que não tinha um aluno "forte", embora grupo de alunos médios - deixei porquê?, deixei só porque cada um dos melhores alunos já tinha colegas para ajudar e o R. não parecia suficientemente interessado; mas... .......; mas... o facto é que não intuí esse menino, foi preciso ele dizer-me.

Este relato não significa um sentimento de culpa pois culpa é um tipo de sentimento que racionalizo e rejeito. No entanto, significa que ainda soa na minha mente a frase tardia e comovente "estudo, mas não consigo, stôra", significa, em resumo, que falhei.


Fresca ainda a derrota da selecção portuguesa no jogo com a França, vem a propósito dizer que terá feito o seu melhor e que terá jogado globalmente bem, mas não ganhou e isto implica assumir que, nesse jogo, falhou, não se pode escamotear esse facto. Também o professor, por mais esforçado e empenhado que seja, quando não intui a tempo um aluno, com esse aluno falhou - mesmo que não possa garantir que, se tivesse intuído a tempo, teria podido fazê-lo superar as dificuldades, pois o professor falhou antes de poder dizer que não foi possível, falhou na intuição em tempo oportuno. E é esse o risco quando, numa sala, se multiplica uma atenção particular por n alunos que dela precisam e afinal são n+1 que necessitam.

8 comentários:

henrique santos disse...

A reflexão aberta, pessoal e colectiva, sobre as práticas pedagógicas, é um caminho incontornável para a melhoria dos professores. É por saber como procedimentos administrativos tenderão a matar e a fechar este tipo de procedimentos reflexivos, que estou contra o sentido das alterações ao ECD proposto pelo ministério da Educação, designadamente no campo da avaliação do desempenho.

Rui Diniz Monteiro disse...

Isabel, esta preocupação que aqui explanaste angustiadamente é das que mais me têm pesado na minha carreira. Quantas vezes chamo a atenção de colegas meus nas reuniões de avaliação para o facto de eles realmente não saberem com segurança se as críticas que estão a fazer a determinados(as) alunos(as) correspondem à realidade.
No amor há um dilema semelhante: ama-se o outro pelo que ele faz ou pelo que ele é? O amor do 1º tipo é mesquinho, o do 2º tipo pode ajudar a pactuar com situações de abuso. Eu prefiro arriscar e opto pelo 2º.
E é isso que tento fazer como professor: descobrir a pessoa do aluno pelo que ele é, e não apenas pelo que ele faz.
Suspeito que não o consigo a maior parte das vezes. E sei que, esgotados como a ministra nos quer, será cada vez mais difícil conseguirmos fazê-lo.

tsiwari disse...

muitas vezes é complicado - outras é impossível - conhecer (como devia ser) cada aluno. Eles são aos 30 na sala de aula (relembrando uma das bocas da Milu -os profs estão, desocupados, aos 30 na sala de profs), e em cada uma das 4/5 turmas.

quantidade e qualidade rimam mas não não deixam de ser incompatíveis.

beijo

Teresa Martinho Marques disse...

MAis uma vez aqui... tudo normal... botãozinho esquerdo e tudo a funcionar como deve ser...
Aqui "a esquerda"... funciona!!! :)

AnaCristina disse...

Não queres a culpa, mas eu, nesses casos, fico tão desapontada comigo mesma... Sinto-me culpada mesmo, sinto que tratei mal aquela criança...

Provavelmente a culpa que racionalizas e rejeitas também a vou rejeitar daqui a uns anos mas neste momento ainda não sou capaz e sinto-me impotente.

IC disse...

Respondo em especial à Ana Cristina, sobre a questão da culpa. Quando digo que racionalizo e rejeito esse sentimento, refiro-me apenas a que, à posteriori (por vezes, na vida, através da experiência) percebemos que falhámos ou cometemos erros e eu faço a distinção entre assumir que foram falhas ou erros e outra coisa que é tê-los cometido por desleixo ou com consciência deles. Como este último caso não é o que acontece quando queremos fazer o melhor que somos capazes, penso que não devemos, à posteriori, deixar o sentimento de culpa invadir-nos, mas apenas considerar que os erros fazem parte das aprendizagens, na altura fizemos o que soubemos, a seguir descobrimos que já sabemos mais ou já conseguimos perceber o erro ou falha, se podemos corrigir é óptimo, se já não podemos, fica uma aprendizagem, não deve ficar um sentimento de culpa que, no momento, não tivémos. Se não o tivémos no momento, é porque não tivemos capacidade para o perceber e até podemos ter errado pensando estar a fazer o melhor (quantas vezes isso acontece com erros de momento com os filhos, quando não há seres com quem mais nos esforcemos para não errar?)
Em suma, é neste sentido que digo que racionalizo e rejeito o sentimento de culpa. Claro que se percebemos que andamos a errar ou a causar algum mal e não procuramos corrigir isso, então já se está a falar de outra coisa, já se está a falar de culpa mesmo, consciente e sem nos importarmos, mas não foi disso que falei, nem é disso que falas, Ana.

matilde disse...

E quantas vezes entendemos a falta de resultados positivos pela preguiça e falta de trabalho/empenho, quando é "apenas" o resultado de inúmeras tentativas fracassadas no passado? O R., felizmente, mesmo que isso não lhe seja suficiente para terminar o 9º ano (e talvez até lhe seja benéfico repeti-lo, pois a retenção não pode nunca ser vista, na minha opinião, como "castigo"), não desistiu ainda de tentar... E se to confessou é porque sentiu confiança para o fazer - em ti e nele próprio.
Se podemos fazer mais e melhor? naturalmente que sim, tantas vezes... mas podemos sobretudo melhorar todos os dias, reflectindo sobre aquilo que fazemos menos bem. E tentando que o nosso "menos bem" não seja suficiente para comprometer futuros de crianças/jovens que connosco trabalham.
Beijinho e obrigada por estas memórias. Fazem-me pensar ;)

Anónimo disse...

Provavelmente expressei-me mal, mas eu também não falo dessa culpa de "desleixo". Falo do mesmo que tu, Isabel, de não ter percebido a tempo, de não ter dado a devida atenção, de não ter conseguido sentir o "algo errado".
Quando me apercebo, sinto uma "muinha", uma comichão de culpa, um zumzum no ouvido "devias ter percebido", "devias ter feito assim ou assado",...

É a isto que me refiro! A esta culpa por não ter percebido, e não a culpa por desleixo ou erro.

Um beijo carinhoso