Ontem tive pinturas na minha casa. O pintor, que é meu conhecido e amigo, às tantas perguntou-me:
_ Não quer fazer mudanças? Esta estante podia sair daqui!
Isto porque tenho a estante a ocupar toda uma parede da minha sala de trabalho e estar, e o televisor que uso é o mais pequeno cá de casa, pois só cabe mesmo à medida num espaço mais alto da dita estante. Ora, estou em vias de substituir um outro pelo que era da minha mãe, bem grande e mais moderno, que poderia pôr ao pé de mim na parede, se tivesse espaço.
Respondi:
_Ah, isso nem pensar! Os livros são uma companhia, gosto muito de os ter aqui ao meu lado.
E perguntou ele:
_Leu estes livros todos?
_ Alguns são para consulta, os outros li, sim, e boa parte quando era adolescente e jovem adulta (respondi eu, que tenho os livros menos antigos e os recentes no quarto, uns arrumados, outros empilhados à espera de prateleiras).
Seria difícil explicar ao meu amigo pintor por que é que os livros da minha salinha de estar são uma companhia, como que viva, quando a minha memória de galinha não consegue descrever os seus conteúdos. Mas, aqui, posso explicar...
Não é por já não conseguir descrever os conteúdos que os livros me são menos familiares. Conheço-os todos, seja por ideias essenciais - algumas marcantes -, seja por emoções, seja pela memória de encantamentos. Todos fazem parte da minha vida, e são sobretudo os de leitura mais longínqua que são companhia mais viva. Porque eu sei que, sem os ter lido, seria uma pessoa diferente, uma pessoa mais pobre interiormente - sem dúvida.
Naquele tempo, quando casei, para mobília o dinheiro só dava para aquela estritamente indispensável, mas a estante não era dispensável e, então, era improvisada com uns cubos abertos e sobrepostos. E o valor do recheio da casa era criado só pelos livros para os quais os salários tinham que esticar (no meu caso, também com a coleção de clássicos do meu avô paterno, que não conheci).
Hoje, os netos não lhes atribuem o valor que lhes dávamos (e que as minhas filhas ainda deram também). Não estou a pensar que os jovens de hoje vão ser interiormente mais pobres - eles têm agora outros meios de formação e comunicação. Nem penso que isso tenha a ver com serem criados com grandes estantes em casa e com estímulos à leitura, pois conheço bem um parzinho querido de irmãos - ele (17 anos) pouco mais leu que os livros obrigados pela escola, e ela (13 anos) é mais receptiva ao estímulo mas, mesmo assim, demora a ler um livro o tempo que a mãe (e a avó) levava a devorar vários.
Isto não é um escrito saudosista, é só uma constatação de tempos tão aceleradamente novos, embora sem deixar de conter um ponto de interrogação. De qualquer modo, este é um blogue de memórias...
Contraste numa casa do 'antigamente'