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Tinham feito muitos projectos. Pedro comprara um barco de pesca, pintara-o de novo; com estacas e pranchas de velhos barcos fizera a sua cabana. Arranjara-a por dentro o melhor que pudera, com esteiras de palha, móveis antigos de casa dos pais, candeias de barro envernizado, búzios e conchas dos mais belos que o mar traz à praia...
Longe, na sua aldeia da encosta, entre pomares muito verdes e casalinhos brancos, a noiva de Pedro fiava o bragal. Tinha tranças loiras no alto da cabeça e as melhores mãos de rendilheira que havia nos arredores. Pedro tinha-a conhecido na grande festa do São Miguel, no Verão do outro ano.
Pedro era pescador, trabalhava por conta dum patrão, mas com as suas economias e a sua coragem, tinha arranjado o dinheiro para comprar o barco. Deixara de aparecer aos domingos na vila, onde as tentações eram maiores — o tiro ao alvo, o jogo da malha, a «venda» do Tio Bento — e o seu barco, o «Estrela de Alva», já estava daí a pouco ancorado na baía, entre os barcos dos outros, com as redes secando ao sol, desenroladas pela areia.
O Inverno chegava ao fim, quando veio o temporal. Com a Primavera, devia chegar da aldeia da encosta a noivazinha que Pedro tinha escolhido no Verão do outro ano. Já as pobres ervas rasas das penedias começavam a espontar-se de verde e a deitar florinhas tristes. E Pedro
nesse dia tinha ido à vila, comprar uns luxos para alindar a casa: um relógio de cuco, um espelho para o quarto, e também um xaile de seda, para oferecer à sua noiva.
O dia desde manhã que ameaçava chuva, mas pela noitinha o céu carregou, começou a soprar um grande vento e a gente velha da vila, os pescadores com longos anos de mar resmungavam, abanando a cabeça:
— Grande coisa vamos ter! Grossa borrasca!...
Pedro voltava com as suas compras para a cabaninha nova das arribas, quando encontrou o Tio Sardinha:
— Olha, menino, não te metas a caminho que o mar já galgou as rochas e vem por aí acima. Se não queres que te apanhe, volta para trás...
— Mas eu vou para casa, Tio Sardinha...
— Se ainda tiveres casa a estas horas... O mar lambeu tudo o que era arribas!
Pedro já não ouviu mais nada: deitou a correr pelo caminho adiante. Depois... Depois, até é melhor não contar. Pedro nem sequer pôde chegar ao alto dos rochedos, ao lugar da sua casa, porque o mar furioso vinha por lá fora, ao seu encontro. Da cabana que ele levantara nas vésperas, com tanto amor, isso nem rasto.
Foi assim que, nessa tarde, o Pedro pescador perdeu em menos dum abrir e fechar de olhos toda a sua fortuna: casa, barco e economias; e, quando o temporal passou, viu-se sentado no alto da arriba, com um relógio de cuco, um espelho e um xaile de seda por únicos bens deste mundo.
Daí a dois dias, chegava da encosta a noivazinha, que ele escolhera no Verão do outro ano, pelo São Miguel. Havia de vir toda asseada, de blusa nova, tranças enleadas em flores, e atrás o pai, guiando o burrico com as arcas do bragal... Ela esperava com certeza que houvesse flores e sinos na igreja da vila. E que no alto das penedias estivesse a cabaninha nova em folha, feita pelas mãos de Pedro, mas toda agasalhada e bonita. E que na baía houvesse um barco pintado de verde, com redes secando ao sol.
E como se enganava!
O mar tinha comido a casa, tinha comido o barco, só deixara no alto da arriba um Pedro miserável, pobre como Job, sem casa nem trabalho...
Na igreja da vila, nem flores nem sinos: muita gente de joelhos, a pedir pelos tristes que o mau tempo apanhara no mar alto e que sabe Deus por onde andariam...
Pedro pensava nisto tudo. Daí a dois dias chegava a noivazinha... Pedro chorava de vergonha e desespero...
Uma gaivota passou, roçou-o com as asas:
— Olha, Pedro, olha como brilha o Sol! Prepara as redes, volta ao mar...
— Não tenho barco...
O Sol bateu-lhe na cara, brilhante, a pino:
— Olha que é meio-dia, Pedro, vai para casa comer as tuas sopas...
— Não tenho casa...
— Não tens casa?! — gritou ali ao pé uma voz rouca e áspera.
— Tens tal! Sempre há um recanto nas rochas mais altas para os desgraçados como tu. Terás peixe cru, sol e bom ar. À noite, a rocha viva serve de tecto e a palha seca serve de cama... Em querendo é vires...
Pedro, que voltara a cabeça, ainda viu a grande águia marinha levantar voo. Olhou pela última vez para os buracos abertos onde tinham assentado as paredes da sua casa. Pensou ainda na vergonha que seria receber na miséria a noiva que ele escolhera. Não tinha coragem, não tinha coragem...
Depois fez uma trouxa com o relógio de cuco, o espelho do quarto e o xaile de seda, e meteu-se a caminho pelas altas escarpas dos rochedos.
— Que vens tu cá fazer? — perguntaram as aguiazinhas-bebés quando viram aparecer no seu ninho de rochas aquele homem esfarrapado e sangrento.
— Venho viver convosco. Foi a mãe-águia que me convidou.
— Ah! — disseram as aguiazinhas, curiosas. — E o que sabes fazer? Sabes voar?
— Não — disse Pedro.
— E tens garras muito grandes?
— Não.
— Bico já se vê que também não tens... Afinal para que é que serves?
Então Pedro disse tudo quanto sabia fazer. Mas como nenhuma das coisas que um homem sabe fazer pode ser feita num alto ninho de águias, longe do mundo e só com as fracas mãos que os homens têm, as aguiazinhas não apreciaram por aí além os talentos de Pedro, e ele viu- -se desde logo esquecido e desprezado, e ali ficou para um canto.
Quando a noiva de Pedro chegou à aldeia, encontrou as portas das casas fechadas em sinal de luto.
— Onde mora o Pedro pescador?
— Morava lá em cima, nas arribas...
A noiva de Pedro não quis saber por que diziam «morava» e correu às arribas: mas nas arribas não havia nenhuma casa. Só restavam os buracos abertos das estacas da antiga cabana.
— O mar levou-lhe a casa... — explicaram os tojos rasteiros da penedia.
— E ele, onde está?
— Isso não sabemos...
A noiva de Pedro viu lá em baixo, à beira-mar, ao sol, homenzinhos que consertavam barcos. Desceu as arribas, e chegou à praia. Mas entre os barcos alinhados não estava o barco verde, o «Estrela de Alva».
— O mar levou-lhe o barco... — responderam os homens às perguntas da noiva de Pedro.
— E ele, onde está?
— Isso não sabemos...
— Talvez o mar o levasse também... — disse então o Tio Sardinha, que fumava ao sol o seu cachimbo. — Na tarde do temporal vi-o subir para as arribas, aconselhei-lhe cautela... O mar talvez o levasse...
— O mar leva tudo... — disseram os homens.
A noiva de Pedro tornou a subir as arribas e sentou-se nas pedras que tinham segurado as estacas da cabana de Pedro.
«O mar leva tudo...», diziam os homens.
— Mas talvez não o levasse! — disse a noiva de Pedro.
— E não levou! — disse a águia marinha passando a voar sobre as rochas da beira-mar.
— Sabes dele? — gritou a noiva de Pedro.
— Está no meu ninho! — respondeu a águia, e passou para mais longe.
As mãozinhas que passaram dias e dias fazendo dançar os bilros, fiando o linho na roca, têm a pela fina e as unhas delicadas. Os pés que andaram metidos em chinelinhas bordadas, são mimosos e doridos. Os braços que nunca levantaram mais peso do que uma abada de frutos ou de flores, são fracos, cansam-se logo. Mas os corações valentes, quando querem uma coisa, valem por mãos calejadas, valem por pés de andarilho, por braços de lutador...
E a noiva de Pedro chegou ao ninho das águias.
As águias andavam a voar ao sol. Só Pedro dormia deitado na palha.
— Pedro, acorda! Acorda, Pedro!
Pedro abriu os olhos, corou de vergonha.
— Ah! Porque vieste? O mar levou tudo...
— Não te levou a ti, Pedro. Ainda estás vivo...
— Já não tenho nada, já não valho nada...
— Vamo-nos embora, Pedro! Que não és águia marinha para viver nestas alturas...
E a noiva de Pedro fê-lo levantar. Sentados na rocha, à beira do ninho, viam lá em baixo as ondas na praia, e o Sol a afundar-se, vermelho e sem raios, na linha das águas...
— O mar levou tudo. Volta tu sozinha. Hás-de achar um noivo com casa e com barcos, mais rico e melhor... Eu é que não desço!
— Que vergonha, Pedro! Já não és um homem!
— Já não tenho nada! Olha o que me resta. — E Pedro mostrou a trouxa: era o espelho para o quarto, era o relógio de cuco e o lindo xaile de seda.
— O mar levou tudo, o mar levou tudo...
Então a noiva de Pedro pegou no espelho e pô-lo diante dele:
— Olha bem para aí, Pedro, e vê se o mar levou tudo; olha bem para aí e vê que ainda és o mesmo Pedro que comprou o «Estrela de Alva» e construiu a cabana, lá no alto das arribas...
— Sim, fui eu, e ainda aqui estou...
— E havemos de fazer os dois outra cabana, e compramos um barco mais pequeno, e vais ver Pedro, e vais ver... Vamos descer para a vila...
— Qualquer dia começamos... Hoje não, que estou cansado... Deixa passar mais um tempo... Esquecer mais esta desgraça... Esquecer que o mar levou tudo.
— Tudo não, Pedro. Deixou-te isto: olha como o tempo passa. — E a noiva de Pedro mostrou-lhe o relógio de cuco, o tiquetaque apressado, os ponteiros, gira que gira. — Olha cada minuto que passa, olha que já não volta mais. Temos de o aproveitar, mãos à obra! Vamos, Pedro!
Pedro pôs-se de pé e começaram a descer de mão dada. Já caía a tarde e fazia frio.
— Que vergonha a minha! A noiva que eu escolhi no outro ano pelo São Miguel vem-me achar de mãos vazias... O mar levou tudo, o mar levou tudo!
O vento do mar passava.
— Pedro!
— Que é?
— Não vês que eu tenho frio...?
— Põe o teu xaile de seda... Foi para ti que o comprei...
— Vês que o mar não levou tudo? Sempre tinhas que me dar...
E Pedro, todo contente, deitou pelos ombros da noiva o belo xaile de seda.
Assim voltaram à vila.
Hoje Pedro tem uma casa de pedra e cal, tem muitos barcos, que vão e vêm no mar. Mas aos filhos que vão nascendo, Pedro sempre mostra as três coisas que o mar não levou: o espelho do quarto, o relógio de cuco e o xaile de seda. O espelho, que é como a certeza de nós mesmos, e do
que podemos fazer; o relógio, que lembra a obrigação de trabalhar e de encher utilmente o tempo que não pára; o xaile de seda — para que ninguém esqueça que ainda o mais miserável tem sempre um pouco de amor para espalhar pelos outros.
E estas são três coisas que o mar de nenhuma desgraça pode levar.
Esther de Lemos
A borboleta sem asas e outras histórias
Lisboa, Editorial Verbo, 1986
Via Clube dos Contadores de Histórias
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